MINERAÇÃO

Por Fernanda Perdigão

 

Depois de 3 anos e 9 meses do Desastre-Crime da Vale S.A., o rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão em Brumadinho/MG, as pessoas atingidas buscam a garantia de seus direitos, ainda violados, a efetiva participação e o direito à voz na execução do Acordo, firmado entre a Vale S.A. e o Estado de Minas Gerais.

É importante esclarecer, inicialmente, que os danos provocados pela Vale S.A. passam por diversos conceitos. Aqui serão abordados os direitos difusos e coletivos, sendo os direitos difusos caracterizados como direitos transindividuais, ou seja, direitos que não pertencem a um único indivíduo e que atendem a um grupo de pessoas ou à coletividade afetada pelo rompimento da barragem da empresa Vale S.A. 

Assim, podemos dizer que os direitos difusos pertencem a um grupo maior, sendo direitos coletivos em sentido amplo, uma categoria mais abrangente. De maneira geral, é possível  definir a existência de três categorias básicas de direitos coletivos: os direitos individuais homogêneos; os direitos e interesses coletivos em sentido estrito (stricto sensu);  e os direitos e interesses difusos.

Atualmente, a grande maioria das ações de direitos coletivos são promovidas, no Brasil, através do Ministério Público. O crescimento da atuação específica do órgão ministerial, a sua competência, via de regra, e o trabalho por ele desenvolvido não têm sido exitosos. Muitos dos direitos coletivos defendidos no caso do rompimento da barragem da Vale S.A., em Brumadinho, foram silenciados por meio de um Acordo Judicial, firmado entre o Estado de Minas Gerais e a empresa Vale S.A. Tal fato gera, no mínimo, certo estranhamento, pois, um próprio órgão do Estado é o principal defensor deles, ainda que ele seja dotado de independência funcional e de autonomia. Logo, nesta relação jurídica do Acordo, é questionável a ligação desse órgão com o Estado de Minas Gerais. 

Desta forma, explica-se a luta das pessoas atingidas, que buscam um meio de inserção da sociedade civil nos processos de execução do Acordo Judicial, a fim de que haja, na persecução de seus direitos, sua participação democrática, escuta e decisão. A legitimidade do Ministério Público na tutela dos direitos coletivos, da forma que se apresenta hoje, obriga as pessoas atingidas a exigirem espaços de construção e a questionarem a atuação do Ministério Público e dos governantes, já que estes não se utilizam dos meios de que dispõem para garantir a participação efetiva das pessoas atingidas, conforme pondera Mirra: 

peculiaridades dos direitos e interesses difusos põem à mostra o significado político da sua proteção, na medida em que, apesar de serem direitos e interesses supra-individuais e indisponíveis, não têm e não podem ter no Estado o titular único e exclusivo da persecução da sua satisfação, impondo-se a abertura de canais para a participação democrática dos indivíduos e dos diversos grupos sociais em sua tutela” (MIRRA, Álvaro Luiz Valery, “Associações civis e a defesa dos interesses difusos em juízo: do direito vigente ao direito projetado”, in GRINOVER, Ada Pellegrini e outros (coord.). Direito Processual Coletivo e anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: RT, 2007.”

Contudo, essa tutela coletiva não pode ser indiscriminada, pois nem sempre o que esse órgão busca tutelar reflete a vontade da sociedade. É urgente que o próprio Ministério Público se reconheça como um representante da sociedade, cujo dever irrevogável é garantir a escuta dos anseios desses sujeitos de direitos. 

Nessa perspectiva, é possível, mesmo diante de previsão da lei posta, aplicar o instituto da representatividade adequada, fazendo-o em face do âmbito de atuação do órgão ministerial, previsto no artigo 127 da Constituição Federal, que estabelece que a esse ente incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.  Portanto, é errôneo o entendimento de que a legitimação do Ministério Público é irrestrita e absoluta, em relação a qualquer direito coletivo em sentido lato submetido ao Judiciário.                

Entretanto, o que vemos na prática da tutela coletiva, do Acordo Judicial firmado entre o Estado de Minas Gerais e a Vale S.A., é o que podemos comparar com o pensamento de Chauí em uma aula na UFPR: “Vivemos hoje a privatização dos direitos sociais”. Como constatação dessa realidade, podemos verificar, por exemplo, que a partir dos anexos 1.3 e 1.4 – Fortalecimento dos serviços públicos – do supracitado Acordo, as pessoas atingidas experimentaram uma “consulta popular” para definição destes projetos, através de uma ferramenta on-line. É necessário mencionar que boa parte das comunidades atingidas sequer tem acesso à tecnologia e à internet, o que, por sua vez, deveria inviabilizar tal metodologia. Além disso, foram apresentados temas e subtemas de projetos, sem nenhuma descrição que possibilitasse a compreensão das pessoas atingidas, comprometendo, mais uma vez, a participação democrática. Também não há indícios de nenhuma ferramenta de controle social sobre os projetos definidos pelos compromitentes do Acordo – Ministérios Públicos Federal e Estadual; Defensoria Pública do Estado e Comitê Gestor Pró Brumadinho (criado via Decreto Estadual para gerir o processo de reparação dos danos e execução do Acordo).

Percebe-se, claramente, que os direitos da reparação integral de danos foram transformados em “serviços”. O resultado desta ação neoliberal traz consequências graves às pessoas atingidas, a sua cultura, a sua memória, aos seus conhecimentos populares e territoriais e, por fim, a sua auto-organização. A privatização desses  direitos é uma visão minimalista expressa na execução do Acordo por meio de um “Gestor Estatal” – Comitê Gestor Pró Brumadinho – cujo escopo de funcionamento é similar ao de uma empresa, como um negócio rentável àqueles que o executam. 

Tais equívocos desta legitimidade e tutela coletiva, aqui tratados, não cessam na execução do Acordo Judicial. Permeiam, ainda, a “gestão” do Direito à Assessoria Técnica Independente, que deveria ser uma instituição independente para as pessoas atingidas. Porém, neste arcabouço de decisões unilaterais das Instituições de Justiça, este direito foi  conspurcado em mais uma  ferramenta do órgão do judiciário. As Instituições prestadoras de serviços de Assessoria Técnica Independente tornaram-se Assistentes Técnicos das Instituições de Justiça, de modo que as definições dos trabalhos a serem desenvolvidos por estas instituições de Assessoria Técnica Independente passam pela aprovação das próprias Instituições de Justiça, colocando em xeque a autonomia e a  participação das pessoas atingidas, principalmente no que diz respeito à definição das demandas que deveriam ser executadas pelas Assessorias Técnicas. 

A ausência das garantias de participação efetivamente informada e do respeito ao princípio da centralidade do sofrimento das vítimas resultam no agravamento dos danos provocados pela Vale S.A., em todos os 27 municípios atingidos na Bacia do rio Paraopeba. 

Por conseguinte, as pessoas atingidas vivem, diariamente, processos de revitimização, tais como: ineficientes políticas públicas de saúde para controle da contaminação causada pelos metais pesados presentes no rejeito derramado, contágio de fontes aquíferas de abastecimento para o consumo humano e a inexistência de políticas públicas voltadas à diversificação econômica e à reestruturação da agricultura, da pesca e de outras atividades vocacionais dos municípios e comunidades afetados. Além, claro, da violação do direito de participação e dos pilares do princípio da reparação integral dos danos. Em particular, a insatisfação das vítimas, que afeta sobremaneira a dignidade social. 

Em suma, são negados os direitos humanos fundamentais sociais, econômicos e culturais, que postulam o mínimo existencial. A dignidade social também compreende os direitos de solidariedade, denominados de direitos difusos e coletivos, já citados neste artigo.

Por fim, a tutela coletiva representa uma parcela significativa das demandas, pois esses direitos, tais como direito do consumidor e defesa do meio ambiente, envolvem a pessoa humana como destinatário. É expressamente urgente a implementação de mecanismos que garantam a defesa destes direitos sob o prisma desses sujeitos de direitos que atuam incansavelmente na busca pela efetiva participação informada e a devida reparação integral dos danos junto ao legitimado desta tutela, o Ministério Público.