CONTO

Por C. Alfredo Soares

 

O mês mais duro do ano pra Mané Rato estava em vigor. Dezembro chegava com aquela pressa do natal e ano novo logo ali. Seu patrão pensava nas quatros folhas a pagar e exigia que todos fizessem hora extra. Prometia até cesta básica e 5 litros de vinho barato de garrafão. A Mané e seus amigos, não era dada outra opção. Não lhes cabia sonhar, ter planos de longo prazo – nem mesmo em 24 parcelas no carnê – ou imaginar o melhor pra si e para os filhos. 

O trabalho arriscado, demasiado pesado, poeirento e insalubre tinha que ser feito. A Serralheria corta as pranchas de Ipê, Peroba Rosa e Angelim com precisão. Seu alento vinha nos boletins escolares dos seus rebentos. Todos estudavam em escola pública e passavam de ano. Aquilo era uma fresta de luz em meio às trevas daqueles que viviam uma pseudo liberdade em meio a uma escravidão disfarçada, que rendia um salário que chamavam de “calça curta”, pois não chegava ao fim do mês. O jeito era meter um vale, que produzia um rombo nas contas de toda forma. O dinheiro sempre voltava para as
mãos dos exploradores. 

Aquele homem forte de coração mole sonhava ver os filhos vivendo com alguma dignidade. 

Mané Rato já não se via fora daquela armadilha socioeconômica que subjugava sua inteligência e expectativas de dias melhores. Suportava tudo pelos rebentos que teve com sua nega fiel e obstinada, assim como seus amigos havia rasgado seus sonhos na esperança de que seus descendentes diretos iriam fazê-los por ele. Por isso suportava tamanho esforço físico dia a após dia. Seus companheiros de labuta pensavam igual, mas não confessavam pra não demonstrar fraqueza. aliviavam a luta rindo alto enquanto levantavam toras de mais de 18m x 30cm x 10cm, em meio a poeira levantada pela serra afiada da tupia. Após o expediente bebiam no final do dia até esquecer. A cachaça queimava a garganta e estancava as feridas. 

Em casa Eulália lutava, trazia os filhos na rédea curta, mantinha a casa de alvenaria, no alto do morro, com chão de cimento e paredes de tijolos expostos, tudo simples, bela e limpa. 

Quando saía o dinheiro extra do décimo terceiro, aquele homem orgulhoso corria ao mercado e trazia tudo que o dinheiro dava, pra Nega amada preparar a ceia natalina. Eles só queriam ver a mesa farta e a felicidade estampada nos rostos da família, nem que fosse por um dia. 

No dia 24, Mané sumia. No bar não estava, nas ruas não se via. Apesar disso, em casa os preparativos pra ceia não paravam. A cozinha denunciava quão especial a data era. As horas passavam e o homem não chegava, onde estaria? Eulália se angustiava, mas não deixava seus afazeres culinários. Ela sabia que Mané iria de casa em casa dos verdadeiros amigos, seus parceiros de resistência, da lida suada e diária, num gesto de generosa cumplicidade. 

Todos ali sabiam o peso de ser quem eram; meros operários e proletários. 

Em cada casa que ele passava tomava uma taça ou copo daquele vinho doce e barato, ganho do patrão. Um vinho ruim de dar azia noutro dia. Em troca beliscava uma lasca de frango assado com farofa que lhe ofereciam de coração. Até na casa do patrão passava. Seu Antônio, um português de poucos modos, apontava pra ele e o enaltecia. 

Mané era mané só de apelido, inteligente não se enganava, sabia onde andava. Por lá, pouco ficava. 

Dali voltava para os seus, reunidos, novamente, no botequim da esquina, onde se jogava sinuca e pendurava as pingas num caderno de brochura. Riam alto de novo e apostavam. Erguiam um brinde por mais um ano que ficava pra trás. Aquele gesto era um ritual de resistência. No fundo do bar, próximo à porta do banheiro fétido, num quadro verde, anotavam os resultados de cada jogador. Era a partida final. De tão trôpegos nunca saberiam quem havia ganho o jogo da noite passada. Sem problemas. Dali ouviam o sino da igreja tocar pra missa do galo e, só então, trôpegos, seguiam pra casa.

O Natal doía mais do que aliviava, talvez por ser o único momento de fartura, como se mostrasse que aquela data santa não tinha lugar à mesa do dia a dia de todos. 

Mané chegava em casa com cheiro de alterado. Sua mão calejada, suja de cal dos muros por onde se equilibrava, as barras da calça enlameadas, por vezes só com um pé da sandália de borracha. Sabia que não tinha condições de comprar presentes, bem que queria, as crianças eram boas demais. Mas, ali, o que desejavam era sua presença. Tomava um banho, pra agradar a amada, que não o repreendia. 

Ali diante dos filhos, num momento de reconciliação, rezava fervorosamente. Todos de mãos dadas. Se reconciliava quiçá com Deus. Pedia aos Santos perdão, mas era Ogum que o protegia. Mané Rato sabia disso, mas não contava pra ninguém. Sua ancestralidade explodia naquele instante de fé. Tudo oprimia aquela gente retinta, menos sua crença original. 

Sua prece de tão forte trazia calor no corpo dos presentes. 

Ele nunca andou sozinho, mesmo estando quase sempre ausente. 

O tempo passou e Mané a ponto virar Seu Manuel, seus melhores amigos foram partindo. Um após outro. Ele sentia sem os olhos marejar. Dizia sempre que homem não chora, um mantra que nem ele acreditava. Quando seu dia chegou, os amigos que restavam prantearam seu corpo com lágrimas sinceras. Foi até bonito de ver tamanha comoção. 

Mané conquistou mais do que imaginava. Soube ser feliz em tempo presente. 

Não viveu o futuro como um tolo inconformado. Partiu sem mágoa. Leve como uma pluma. 

Quando chega o Natal, seus filhos se reúnem e lembram dele com alegria. Pois sua lição é referência que ressignificou os natais vindouros dos seus filhos e netos. Tudo só foi possível por ele ter se transformado em ponte do antes com o depois, um legado de amor puro forjado pela vida dura de um homem tão simples quanto seus amigos. 

Afinal não passavam de uns manés de pés rachados.