OLHARES

 

 

Por Paolo D’Aprile

 

 

Mil anos atrás recebi o convite para escrever um artigo sobre o nosso trabalho. Contei de um menino aninhado em um caixote de papelão com um buraco de bala na perna, a infecção, o pus. Contei que a polícia em patrulha não gostou dos meus questionamentos. Contei das mãos ao alto de frente para a parede, pernas abertas, apalpada geral. O artigo continuava descrevendo a área dos hotéis de prostituição infantil. Os travestis que me entregavam as crianças para acompanhá-las aos abrigos. Na verdade, eu queria escrever de quando não dei os dez reais aquela garotinha: se eu não pagar, eles vão me matar. Não dei. Dez reais. Não dei. Nunca havia dado dinheiro, o pessoal da rua já sabia e ninguém pedia mais. Continuei seguindo a regra. Não dei. Dinheiro não. Pode pedir qualquer coisa, menos dinheiro. Sempre foi assim, não vou mudar agora.
Soube que foi naquela noite. A menina estrangulada até a morte, bem que avisou: eles vão me matar. E eu não fiz nada, ela insistia tentando me convencer de qualquer forma, e eu nada. Não fiz nada. Segui a regra: dinheiro nunca. Não dei. Era isso o que eu queria contar no artigo. A menina estrangulada até a morte por causa de uma dívida de dez reais. Lembro do nome, da voz, do rosto, dos olhos claros, lembro de tudo, lembro do cortiço, lembro da janela do quarto andar, lembro do portão da escala, dos cômodos, do cheiro, dos ratos, dos rostos de todos aqueles que ali moravam um em cima do outro. Lembro de tudo.
Este final de tarde está agora definitivamente perdido. Uma profunda melancolia e um imenso desejo de voltar à casa e afundar nos meus livros. Perambulo pela área, um café, um cigarro, à toa por aí, um barzinho vazio, eu, mais vazio ainda.
Ao invés de contar da garota assassinada, naquele artigo escrevi sobre a absurda coexistência entre o teatro maravilhoso e o bairro mais infame da cidade. Uma sala de concerto imensa com todos os recursos da ciência acústica, sede da maior orquestra brasileira, onde assisti a exibições dos grandes, uma sala onde Villa Lobos encontra Bach para a felicidade de quem pode pagar e meu deleite complacente. Guardada como o maior tesouro da cidade, protegida por guardas armados, surge no coração do bairro onde reina o desespero, onde a condição humana, feito carne podre, é somente a dor, a dor sólida, total, a dor-pedra a dor do nada universal.
Mil anos depois, aqui estou eu novamente. Tudo como era, como sempre foi. Ou quase. Tudo diferente. Falta a parede onde fui obrigado a apoiar mãos e rosto, onde fui apalpado com gosto por zelosos policias. O prédio demolido, o quarteirão demolido. Os hotéis fechados. A prostituição infantil mudou de endereço. Os travestis, o crack, o comércio ao ar livre, as pessoas no chão convulsionando, o desespero carne podre, tudo isso continua. As várias tentativas de intervenção e requalificação da área falharam. No vazio urbano criado pelas demolições maciças, uma pequena favela. Não durou muito. Chuva de gás lacrimogêneo, pessoas baleadas, espancadas. O espaço, novamente livre, está pronto para as construtoras concretizarem sua especulação imobiliária.
Querendo ver o céu, levanto os olhos, reconheço a janela onde aquela garotinha foi estrangulada até a morte, por dez reais. Mais um café. Ao meu lado, adolescentes de celular na mão: risadas irritantes duas oitavas acima do nível de segurança auditiva. Uma parede me separa da sala de tortura. Estou na antiga sede da polícia política, hoje centro cultural: memorial da resistência. Está tarde, decido voltar a casa a pé, por aquelas ruas. Dois policiais se aproximam, instintivamente estou quase levantando as mãos para me colocar com a cara na parede, ao invés disso: “Senhor, senhor… nós aconselhamos a não passar por aqui, é perigoso”. Fui chamado de senhor. Um senhor de óculos, quase careca, acima do peso, a pé, sozinho, no bairro do crack, entre travestis, prostitutas, casas de jogo ilegais, eu, um senhor vítima potencial, que não sabe onde está se metendo. Obrigado, queria responder, obrigado, mas aqui me sinto em casa. Continuo andando, reconheço cada esquina, cada mocó, cada muro, cada bueiro, reconheço minha lembrança, meu desamparo, minha desolação total. Reconheço minha covardia. Nunca contei a história dela, nunca mais pronunciei seu nome. Dez reais. Lá, naquele prédio aos pedaços, a janela do quarto onde foi estrangulada. A luz está acesa.