Este artigo foi publicado no Observatório de Favelas em janeiro de 2018. Por considerar o artigo atual e que muito há o que nos dizer por meio dele, ainda mais no momento político atual, a Pressenza decidiu abrir as asas para mais essa publicação. Boa leitura.

 

No dia 21 de novembro de 2017 o Projeto de Lei 193 (Programa Escola Sem Partido), que datava no Senado brasileiro desde 2016, foi retirado. Essa notícia, para além de um alívio momentâneo, não altera, de modo conjuntural, os rumos das mudanças na Educação, na esteira em que se pretende seguir como percurso condicionado pela política educacional da chamada Contrarreforma do Ensino Médio, a partir do encaminhamento da Medida Provisória (MP) 746/2016 e da Lei 13.415/2017. Neste contexto, é de fundamental relevância reafirmar um projeto de educação escolar pautado em sua função social de acesso universal ao conhecimento acumulado historicamente e à sua problematização crítico-social, por isso dialética. As ciências, como organização histórico-institucional dos conhecimentos, não são neutras, tampouco o são os conhecimentos, impregnados pelas demandas sociais, tecnológicas e ideológicas de seu tempo.

Galileu, que viveu, em corpo presente, entre os anos de 1564 e 1647, atravessando os séculos XVI e XVII, foi um personagem fundamental para o conhecimento e para a ciência. Foi condenado pela Igreja e ficou frente a frente ao tribunal da inquisição. Não se pode permitir, hoje, que as “inquisições” cheguem com novos formatos e desenhos, muito menos nas escolas, privadas ou de Estado. A escola precisa ser firmada e afirmada como lugar do acesso, da organização e da problematização do conhecimento.

Muitas vezes a escola padece apenas no poder institucional da ideologia, assimilando os aspectos de uma superestrutura que controla e interdita a potência humana. Nada de neutro há nisso, trata-se sim de uma disputa sem neutralidades: o predomínio institucional de um lado e, de outro, construir e preservar um ambiente que crie frestas favoráveis para a ampliação da potência humana.

A importância que levou a ancorar Galileu ao título é justamente a identificação da pertinência ao acesso e organização do conhecimento na escola. Trata-se de uma inspiração ao conhecimento que precisa ser marcada, registrada e divulgada. Poderia ser Newton, Einstein, Darwin, Milton Santos, Florestan Fernandes, pois, o que aqui está em questão é a importância do conhecimento e o lugar da escola como ambiente para o acesso, a organização e a problematização coletiva do conhecimento. As escolas de Estado, sejam as municipais, estaduais e federais, essas chamadas de públicas – e que públicas serão quando as pessoas, sujeitos desse ambiente, forem centrais no processo de organização do conhecimento – possuem papel fundamental para o acesso e a organização do conhecimento historicamente acumulado.

Educandos e educadores, familiares e moradores, pesquisadores e ativistas, são as pessoas que, juntas, em suas diversidades e diferenças, constituem-se sujeitos e podem fazer o público chegar no estandarte do conhecimento para potencializar a vida e a formação de sujeitos para essas pessoas. Marca-se, portanto, a importância do conhecimento, para que o mundo se transforme aos olhos e com as diversidades de lentes com que as pessoas, sujeitas desse processo, se constituem em seus grupos sociais.

Claudio Ptolomeu no primeiro século após Jesus Cristo formulou o que foi conhecido como teoria geocêntrica, que a Igreja abraçou com todo o seu poder na época. Segundo essa formulação a Terra estaria no centro do sistema solar e tudo estava girando ao redor da terra. Não havia conhecimento para o contraditório e o que foi chamado de teoria, ganhou grande força com o poder da Igreja. Assim como o átomo nunca foi a última parcela do ser, a Terra também não contava com tal vocação geocêntrica, uma inverdade que, dadas as condições históricas e teóricas, até aquela época havia se acumulado ao saber.

Com Copérnico, no século XV, seguido por Galileu, o movimento ganhou outro sentido. A Terra e os demais planetas se movem ao redor de um ponto vizinho ao Sol, sendo este o verdadeiro centro do Sistema Solar. A sucessão de dias e noites passa a ser uma consequência do movimento de rotação da Terra sobre seu próprio eixo. Perspectiva esta que foi muito além de quaisquer astronomias ou astrologias e brilhou como conhecimento potente para pensar o papel humano na história e nas múltiplas dimensões da vida, para além dos impactos “religiosos”. Vamos além: giramos entre as pessoas, as pessoas giram entre nós, e não há zona de conforto, pois toda potência vem dessa gira de um trabalho coletivo, diverso, múltiplo, de transformação da natureza, de criação, de relação com outras pessoas todo o tempo. E o ponto de eixo? A dignidade da vida e a potência da criação humana. Imediatamente as lentes giram para o trabalho escondido pelas nuvens da exploração, da garantia da subsistência, da manutenção do corpo, o mesmo corpo que pode mudar a história, que se limita ao trabalho para sobrevivência e as alegrias cindidas, não encontrando, muito menos construindo, o lugar criativo da potência humana. Perseguir a criação do ambiente para a ampliação da potência humana é o desafio desse mundo no qual vivemos.

Desta forma, o importante é que a Escola precisa assumir seu lugar de sistematização, organização, acesso e problematização do conhecimento historicamente acumulado – pois ele tem uma história! -, com educadores e educandos como sujeitos desse processo. Com seus amores, escolhas, preferências, afetividades e sensibilidades, com didática de participação e pedagogia crítica, sem transformar educadores e educandos em objetos ou simples link de passagem.

Educadores e Educandos precisam se encontrar em ambientes motivados pelos territórios, com as pessoas que são os sujeitos desse espaço, fazendo a gira do ensinar e aprender rodar em todas as pessoas sem parar. Cabe, sim, ao educador o rigor e compromisso com o conhecimento acumulado, seja do ponto de vista histórico-social, teórico, científico e filosófico. Cabe sim ao educando o movimento pela apreensão e provocação do conhecimento, daquilo que possa alterar sua vida, para uma vida mais digna e plena em todas as dimensões, explorando suas experiências e desafios. E esse não é um encontro de veredas apertadas e sim de estradas alargadas, com a crítica motivadora como inspiração. Principalmente ao se tratar das escolas de Estado, nas quais as frestas públicas são disputadas a todo o tempo.

Não é razoável que as escolas de Estado formem para o mercado, enquanto as privadas – não todas, mas só aquelas que as pessoas do grande poder aquisitivo frequentam – fiquem com a função do conhecimento. É preciso superar o condicionamento conservador da escola, com o conhecimento às mãos e com o embalo da força crítica coletiva, sem isolamentos solitários. E isso, sem dúvida, pode se firmar, para parcela da sociedade, como um grande passo para superação de desigualdades que tomam a cidade, atingindo com violência as pessoas com menor recurso financeiro.

O projeto necessário é em defesa da vida, em defesa do acesso crítico ao conhecimento acumulado, com uma escola politicamente pública, afirmativa, com pedagogias e práticas por meio das quais os conhecimentos cheguem universalmente para todas as pessoas, movimentando educadores e educandos em uma diversidade comprometida, e com ela, como sujeitos do processo, organizando os conhecimentos nos saberes e na vida. Que chegue às escolas os conhecimentos, com suas diferenças, pois conhecimentos não são sinônimos de teorias, que por sua vez não são sinônimos de ciências, filosofias, tecnologias e ideologias. Que o acúmulo de estudos rigorosos dos conhecimentos acumulados no fazer de homens e mulheres em tribos, quilombos, coletivos, sociabilidades múltiplas e diferenciadas se encontrem e se organizem na escola. Que todos os conhecimentos venham, com liberdade e com rigor, com o compromisso da socialização do acumulado na história e com a produção no encontro.

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