Quarenta anos após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, as nuvens de poeira de La Moneda ainda assombram as consciências. Para além do sacrifício de Salvador Allende, nas cinzas do palácio presidencial chileno sobrevive o trauma das democracias esmagadas pelas garras da Operação Condor. A persistência do símbolo sublinha a vigência de certas feridas. À
falta de justiça, pedem-se arrependimentos, pois mais vale tarde do que nunca. Exceto, ou pelo menos raramente, no seio da mídia.
É verdade que o gigante brasileiro Globo deu esse passo, no passado dia 31 de agosto, ao reconhecer abertamente o “erro” de seu apoio ao golpe militar de 31 de março de 1964 contra o presidente João Goulart. “Estávamos na Guerra Fria e queríamos salvar a democracia”, tenta explicar o diário. O argentino Clarín e o chileno El Mercurio se comportaram da mesma forma
quando os militares conquistaram o poder pela força em seus respetivos países, mas nunca fizeram seu mea culpa. Porque a primeira regra parece ser business as usual.
O ato de contrição do grupo Globo no Brasil não diminuiu seus níveis de audiência. No Chile, El Mercurio continua recebendo, conjuntamente com o grupo Copesa, o benefício exclusivo dos 5 milhões de dólares de ajuda anual do Estado à imprensa. E Clarín conserva sua posição dominante no espetro audiovisual argentino, recusando ceder frequências como exigido pela nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (SCA ou Ley de Medios), cuja plena aplicação se encontra atualmente suspensa por uma decisão do Supremo Tribunal.
As regulações propostas pelas esquerdas sul-americanas dos anos 2000 (Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai) devem ser entendidas pelo prisma da herança dos anos Condor. A censura e o terror cessaram, mas tal não implicou uma vitória do pluralismo, ou pelo menos de um pluralismo efetivo. A forte concentração mediática instituída durante as ditaduras não foi posta em causa com o regresso das democracias. Não esqueçamos que essa era uma das mensagens dos estudantes chilenos que saíram em massa à rua em 2011, ou dos numerosos protestos da “Primavera brasileira” do passado mês de junho. Por vezes, poderia parecer que a História se repete, como na Venezuela em 2002, em Honduras em 2009 ou no Paraguai em 2012, onde a mídia privada dominante agiu em cumplicidade com golpes de Estado que julgávamos fora de moda.
Noutros países, a promoção de uma nova legislação enfrenta a oposição lógica dos grupos mediáticos afetados. É certo que a atitude de alguns governos alimenta uma polarização nociva para o debate público. Também é verdade que, às vezes, como no Equador, a nova legislação tende a estabelecer um inoportuno controlo da mídia e de seus conteúdos em simultâneo com
uma bem-vinda distribuição das frequências. Em qualquer caso, uma redefinição dos espaços de difusão, considerando a profusão de meios alternativos e de rádios comunitárias com que conta a região, era indispensável.
Apoiados pelos Relatores Especiais da ONU e da OEA, a Argentina e o Uruguai romperam com os seus sistemas de regulação obsoletos, engendrados pelas antigas ditaduras. No Brasil e no Chile, o statu quo não mudou. Ironia da história, os adeptos do golpe de Pinochet que pretendiam “evitar uma nova Cuba” têm hoje que reconhecer a veracidade da frase de um de seus
compatriotas jornalistas, exilado durante muito tempo: “No Chile, à semelhança de Cuba, não há nenhum jornal de oposição nos quiosques!”. Por este motivo, pedimos encarecidamente às senhoras e aos senhores acionistas que não invoquem a “liberdade de imprensa” para defender seus dividendos.
Christophe Deloire, Secretário-geral de Repórteres sem Fronteiras
Benoît Hervieu, Escritório Américas de Repórteres sem Fronteiras