O bloco dos BRICS (Brasil-Rússia-India-China-Àfrica do Sul) aposta numa aliança com o Sul Global e visa forjar um mundo de poderes regionais autônomos, sem a tirania do dólar, do FMI e do Pentágono. A ordem hegemônica dos EUA e da Europa está em xeque. Uma nova poderá ser forjada, com outros valores?

 

Por Pablo Bustinduy para Other News | Tradução: Maurício Ayer

Um sentimento de estranheza se espalha pela política euro-atlântica. Num artigo publicado recentemente em El País, o historiador Luuk van Middelaar resumiu isso como um sinal dos tempos: a Europa e os Estados Unidos se sentem sozinhos em um mundo cada vez menos alinhado com seus interesses. É fato que vários parceiros estratégicos do bloco operam com crescente autonomia em relação às suas prioridades. Há meses esse sentimento se reflete no mapa das sanções contra a Rússia: os 45 países que as assinaram equivalem a 61% do PIB mundial, mas apenas 36% da população. A guerra na Ucrânia aprofundou ainda mais as fronteiras entre o Norte e o Sul globais. A recente viagem diplomática de Lula transformou esse distanciamento em uma ameaça potencial: uma vontade própria dos países do Sul, desvinculada de interesses atlânticos, como disposição para deslocar o eixo da resolução do conflito para fora do continente europeu.

No entanto, o que mais preocupava Van Middelaar (que não é um formador de opinião qualquer: Perry Anderson apresentou-o neste retrato ácido como um símbolo do poder político e intelectual de Bruxelas) não era essa proposta de mediação, mas um comentário informal no qual Lula se questionou por que “todos os países têm que fazer suas transações em dólares”. Ainda mais do que a ideia de uma solução para a guerra desalinhada com os tempos e a linguagem do eixo transatlântico, este questionamento do dólar como moeda global foi lido como um verdadeiro desafio. É o espírito que inspirou a construção dos BRICS – a ideia de um contrapoder ao domínio atlântico sobre a globalização, a ideia de um mundo em que os poderes regionais se organizam autonomamente – revivido no pior momento possível para esse domínio, já que se encontra sob pressão de várias frentes e carece de uma estratégia clara de médio prazo.

Em um artigo de grande lucidez, o jornalista Wolfgang Münchau explica em que consiste exatamente essa ameaça. Não é simplesmente uma questão de os países do Sul substituírem uma moeda operacional por outra; nem mesmo que avancem na construção de suas próprias instituições financeiras. Este é um processo muito mais longo e complexo que afeta as estruturas produtivas desses países, suas cadeias de valor e suprimentos e os fluxos comerciais entre eles, que devem ser reorganizados para orbitar em torno de um novo centro. E para isso, a primeira economia que deve ser profundamente transformada é a da China, que também deve desenvolver uma enorme capacidade de coordenação e gestão regional, tanto econômica quanto politicamente. Essa é a outra perspectiva dos debates sobre o reordenamento da globalização. É a visão do outro lado.

Estamos realmente caminhando para essa situação? Existem análises conflitantes sobre quais seriam as intenções da China a esse respeito. Por um lado, proliferam as tentativas de lançar uma sombra antagônica sobre a sua posição no conflito europeu: a China estaria pagando a sua aliança com a Rússia e a atitude cada vez mais agressiva dos seus parceiros, o que significa que cada aproximação a Pequim significa aumentar o risco de um confronto indireto com os Estados Unidos. Por sua vez, as ambições chinesas teriam desencadeado reações defensivas em toda a região do Pacífico, e o fortalecimento da aliança Quad (EUA, Índia, Japão, Austrália) como contrapeso regional a essas ambições. Os que apostam em Washington na estratégia aceleracionista se apoiam nesta leitura: o objetivo é deter a China antes que seja tarde demais.

Por outro lado, não há dúvida de que o salto diplomático de Xi Jinping acumulou importantes sucessos nos últimos meses. A influência da China como potência mediadora é crescente e já se estende ao Oriente Médio e à Europa, como atesta o histórico acordo entre o Irã e a Arábia Saudita e o lançamento de seu plano de paz para a Ucrânia, ignorado por Washington e pela União Europeia, mas não é assim para Zelensky. Nos últimos meses, até 19 novos países se inscreveram para ingressar no BRICS: uma lista que inclui Egito, Argélia ou Argentina, além dos governos de Riad e Teerã. Na confusão da globalização, à medida que a arquitetura de comércio e segurança que governava o mundo está enfraquecendo em vários aspectos, a perspectiva de uma aliança de potências regionais não alinhadas parece mais promissora do que o alinhamento com os mandatos do FMI e do Pentágono.

Qual é a posição da Europa em relação a esses processos? Nas últimas semanas, a política externa europeia deu origem a um verdadeiro caos. O presidente francês, Emmanuel Macron, deslocou-se a Pequim e saudou a iniciativa chinesa para a Ucrânia, numa viagem acompanhada por Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que manifestou uma posição muito diferente em nome das instituições europeias. A Alemanha, por sua vez, continua fazendo malabarismos para manter o mercado chinês aberto para suas exportações, enquanto tenta liderar o esforço de guerra europeu e a futura reconstrução da Ucrânia. Enquanto isso, a atlantista Giorgia Meloni, primeira-ministra da Itália, ameaça tirar seu país da Rota da Seda e, ao mesmo tempo, se envolve em uma disputa diplomática com a França sobre as políticas de imigração de seu governo. O sociólogo Wolfgang Streeck leu nesta algaravia uma profunda divergência de interesses entre a França, inclinada a uma cessação das hostilidades que permita a reintegração da Rússia num espaço econômico e de segurança comum, e a posição alemã, ancorada num atlantismo que procura conter a ascensão política dos países do Leste, mas ao mesmo tempo temerosa de que Washington esteja preparando um salto para o Pacífico que acirraria ainda mais o conflito ucraniano e teria consequências gravíssimas para sua economia.

A essas diferenças internas somam-se as fissuras cada vez maiores na estratégia externa da coalizão transatlântica. A próxima cúpula do G7 nasce dividida, mais uma vez, por divergências sobre a estratégia a seguir com Moscou (desta vez é o Japão que se opõe a um bloqueio total das exportações para a Rússia). Mas também pela falta de solução para os conflitos regulatórios que o IRA trouxe: cada um se prepara por conta própria para uma grande reorganização tecnológica, industrial e comercial sem saber em que princípios assentam esses esforços nem para qual horizonte geral deveriam apontar. As gravíssimas emergências que hoje se acumulam não têm diagnóstico nem proposta conjunta de solução. A posição atlântica suspeita de um mundo dividido, cada vez mais distante de si e mais antagônico, mas sua principal fraqueza não vem de seus adversários, nem mesmo de sua falta de unidade interna: vem da ausência de uma visão geral do mundo por vir, e um projeto que ofereça segurança suficiente para poder ser compartilhado.

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