CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

“Hasta que todo sea como lo soñamos”

Francisco Urondo

 

No ano de 1.913, o então presidente da República, no Brasil recém-formada após os levantes borbulhantes dos militares de 1870 a 1889 (começo do confisco oficial da coisa pública no país) marechal Hermes da Fonseca resolve, rebrilhando em seus alamares, fundar um bairro proletário na Zona Norte do Rio de Janeiro. Batizando-o com seu próprio nome, agiu com uma tal humildade republicana tão desapegada que até emociona.

O ego da classe política nos Tristes Trópicos ultrapassa regimes e épocas.

Esperneando os ares num balé insano, socando portas e janelas, Dayse Love é levada pelos interiores da Trigésima Delegacia de Polícia de Marechal Hermes. Ela, um colosso de travesti de dois metros e dez, mantinha seu ponto nas proximidades da velha estação – dizia que era para dar ares modernos à construção clássica – já há uns dez anos, quando o novo delegado, Fulgêncio Toba, é nomeado para substituir o velho e cansado Mortuário Zimbrão; como novas providências tomadas, a primeira foi a de caçar todos os transformistas da área.

Fulgêncio era mais calmo do que seu antecessor no que concerne à tortura de custodiados, principalmente aos avanços do tempos modernos, assim não arrebentava os que passavam pela delegacia, não de forma geral, mas, pelo contrário, escolhia os pontos anatômicos que não deixam vestígios para eventuais perícias médicas.

Já Mortuário havia enlouquecido depois de torturar e matar mais de trinta custodiados que passaram por aquela delegacia – sem contar os cadáveres que deixou na Favela do Jabiri.

A amoralidade do antecessor vinha sofrendo com recaídas de arrependimentos, a última vítima enforcou chorando e com os olhos marejados asfixiou um estudante que estava preso tão-somente por portar um cigarro de maconha.

– Epifânio Agrário Vulcânico, tenho quarenta e três anos, meu nome artístico é Dayse Love – responde grave o travesti após retirar sua peruca roxa e as duas bolas de ferro pingentes de grilhetas que chama de brincos.

A transfiguração é marcante atordoando o inspetor, que toma as notas de qualificação do suspeito. Do agudo mais melodioso ao grave tonitruante Epifânio surge recomposto como um executivo sênior pertencente a alguma subsidiária de multinacional. Com tanta austeridade emanada daquela figura antes estigmatizada pelos preconceitos de uma sociedade afundada numa falso moralismo, o inspetor recompõe sua fala e a forma com que se dirige ao suspeito.

– Senhor Epifânio, espero que entenda que de acordo com o Código Penal temos aqui… – Titubeou já entendendo a ilegalidade daquela apreensão; continuou na base do suor na testa e cenho franzido como a implorar. – … Um caso de perturbação da ordem social e da tranquilidade. – Terminou de um sopro.

– Escuta aqui, ô, inspetor! Não sou como desses meus colegas de ofício que não têm instrução e ficam prestando serviço gratuito pra vocês no cárcere para serem soltos, mas de qualquer forma larguei o terapeuta e, por isso, vou prestar depoimento e fazer disso aqui uma sessão. – Sempre resoluto impõem-se Epifânio.

– Pois bem, senhor. – Sussurra servil o inspetor. – Inicio então a coleta de seu depoimento sobre o ocorrido na rua Jabiri em frente ao Terreiro dos Cinco Caboclos na Cumbuca às quatro horas e trintas e cinco minutos, madrugada do dia 12 de janeiro de dois mil e vinte e três.

E assim inicia os termos de introdução para o relato do indigitado: “nessa data, o depoente fora encontrado pelos policiais Paulão e Pedroso; o depoente trajando um vestido luxuoso estava em vias de fato com Ariovaldo Pinto, vítima; o Babalaô Três Soluções tentava apartar a altercação na ocorrência. Mais exaltado, o depoente fora recolhido pelos soldados da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e encaminhado para esta Delegacia de Polícia”.

Epifânio com ar taciturno começa a falar: -Tudo começou quando eu tinha treze anos. Conheço Ariovaldo desde aquela época, crescemos juntos, estivemos nas mesmas salas de aula dos mesmos colégios e cursamos a mesma faculdade de engenharia da computação. Enquanto entendia minha sexualidade, – minha homossexualidade que foi aos poucos afirmando o transformismo, – Ariovaldo Pinto seguiu o caminho da moral do pequeno burguês: admitido como supervisor de informática de uma multinacional, granjeou cargos até se tornar um acionista.

Pausa.

– Iglesias, (a essa altura já falava com o inspetor usando o primeiro nome, devolvendo dessa forma os olhares que este lançava em direção ao seu decote estilo venha-cá-meu-puto) quero um copo d’água, estou seca (era de se admirar identificar-se como ela naquela voz de Pavarotti, mas a vida caminha florida até o alcance do clarão final das mais diversas e autênticas formas).

Satisfeita sua sede, retomou as tertúlias de sua vida: – Com o sucesso financeiro, Ariovaldo casou com Himengarda e teve seus quatro filhos: Neslia, Augusto, Durval e Índio. Os anos foram passando sem nos encontramos até que recebermos o convite do encontro dos formandos do ano dois mil da faculdade. – Nesse momento Epifânio começa a ficar com a voz embargada e prossegue soluçando no esforço de conter o choro.

– Eu nunca tinha sentido nada por Ariovaldo até aquele encontro. – Continua entrecortando suas frases.  – Ali eu senti o calafrio supremo do amor e com os olhos brilhando de admiração por aquele homem eu supliquei a Deus a bênção da
correspondência, implorei pela reciprocidade do desejo e da permanência das mãos entrelaçadas. Transportada para o Olimpo da glória do sentimento puro sublimei minhas noites do bairro que também era a Glória; dos diversos homens com quem deitei, homens como Ariovaldo, repetidos casados com filhos que se esgueiravam das esposas e dos familiares na busca de consumar suas vontades mais soterradas: vereadores, pastores, padres (sou uma travesti ecumênica), deputados e até prefeitos e governadores (sou democrata e sirvo da esquerda à direita).

Interrompe o inspetor Iglesias: – Ôpa! Prefeitos e governadores? Porra, Epifânio, entrega aí, a gente ganha uma grana boa da imprensa, eu conheço o editor do jornal Meia Boca, ele garante pra gente. – Falava imprimindo em sua dicção sons articulados à maneira de galã de novela das oito, já restava claro que estava doido para comer aquele travesti que era executivo compenetrado ao mesmo.

– Não abro o bico, amore, aprecio muito a minha vida para entregá-la aos cães famintos. – Fulmina as intenções midiáticas de Iglesias e de pronto retoma sua fala: – O que quero dizer é que fui tomada por uma irrefreável paixão e desde essa tomada sentimental me tornei obcecada por Ariovaldo; espreitava-o à sombra em frente à sua casa, acompanhava seu transporte (anotei a placa do carro dele) até o trabalho e ao clube no final de semana. Aproximei-me de sua esposa Himengarda frequentando o mesmo cabeleireiro – Anastácio, ela é ótima e corta o cabelo da gente como ninguém, – eu sempre recomendo. E, com minha perseverança de coach desesperado por dinheiro, consegui ter acesso à casa de Ariovaldo.

– Tinha me preparado como uma distinta senhora da Igreja das Últimas Restrições, batom de coloração amena, vestido de vicuña de tom ocre opaco, um colar de pérolas foscas e fui usando uma peruca em feitio de coque equilibrado. Minha voz estava modulada em um feminino inquestionável. – Prossegue a narração quase às lágrimas.

– Eu sonho com um mundo sem estigmas, Iglesias, com a harmonia das diferenças e a dignidade que a liberdade permite às escolhas nossas. Nunca tinha sentido o peso do coração de mármore da hipocrisia como quando entrei naquela casa branca e impecável daquela família; “Quem é essa senhora tão alta, Himengarda, se você me dissesse que tem amigas tão bonitas, eu estimularia mais a frequência delas aqui, meu amor?”, ele, Ariovaldo, falou tão sulfuroso aos meus sentimentos. Quis dizer quem eu era, quis afirmar quem eu sou delirando com uma impossível igualdade de armas na disputa por aquele homem.

– Sei que é errado destruir uma família feliz, mas o desejo falou mais alto e o que mais me constrangia era o peso de ser travesti, não o de estar lutando por um homem casado. Não tivesse nascido ou desenterrasse de mim a educação que tive para ser o que não sou, agiria como uma mulher fatal, como uma piranha safada comum (que não cobra, porque tem emprego e salário), mas naquele ambiente eu era como um vampiro da Central do Brasil no palácio de Versalhes. Se a esposa me chamasse de puta eu confirmava e roubava o marido. Ser chamada de abominação me mataria.

Afastou com força Iglesias que sorrateiramente tinha enlaçado Epifânio e lhe fazia cafuné à maneira de namorados famintos na noite da Lapa. Sentindo sua petulância e sempre lembrando do som grave da voz do travesti, recompôs-se imediatamente em sua
cadeira como se nada tivesse acontecido.

-Prossiga, por favor, senhor Epifânio. – Disfarça para tomar maiores ares de autoridade policial.

Em socorro vem uma balbúrdia dessas características das delegacias cariocas, belezas sintáticas como “vai tomar no olho do cu”, “eu como o teu fígado, seu filhadaputa”, neologismos e catacreses da sofisticação estilística tropical.

Com isso, o inspetor pede licença e diz que vai resolver a crise na recepção, na verdade vai ao banheiro se entregar aos instantes fugazes da falsa satisfação sexual, sentimento que mantém o jovem eterno no interior dos homens. – afinal, toda aquela conversa tinha mexido com ele.

– Alcides, segura a porta do banheiro pra mim, estou carregado, hoje comi um empadão feito de areia e concreto no Português. – Pede ao faxineiro da delegacia legal, que divertidamente como o nome a designa, não tem maçaneta na porta dos sanitários.

Imediatamente o pobre Alcides cumpre o pedido como ordem e se submete a mais um desvio de função dos servidores públicos do Rio assumindo o cargo de segurança da privada alheia.

Enquanto Iglesias eleva sua imaginação aos píncaros do prazer viajando para a Paris dos anos vinte ao lado de Dayse, a Louca, praticando as mais insólitas posições do Kama Sutra no alto da Torre Eiffel, a “crise” da recepção da Delegacia já se avolumara à situação de uma orelha cortada, a do inspetor Afonsinho. Este, na intenção de apaziguar os ânimos de um casal que surgira aos socos e sangue escorrendo pelo nariz, foi atacado pela mulher com uma faca de sua bolsa e desferiu o golpe na orelha.

– Porra! – Grita Afonsinho. – O Estado não tem recursos para cobrir o implante da minha orelha!

E assim rasteja a Humanidade até que Iglesias, satisfeito, retorna à sua cansada cadeira de inspetor.

– Prossiga, por favor, Epifânio.

De repente, como ensaiado, faz-se silêncio sepulcral no ambiente, nenhum som mais era emitido da recepção antes alvoroçada.

– “Encantado em conhecê-la, senhora Dayse!” – Falou Ariovaldo comigo sem me reconhecer e foi para seu escritório enquanto permaneci na sala de estar com Himengarda. Não aguentei e, inventado uma desculpa qualquer para desvencilhar da esposa, segui para o encontro de meu amado. – Narra Epifânio ao inspetor.

– “O que é isso, minha senhora?”  – Pergunta Ariovaldo ao ver que entrei no seu escritório e tranquei a porta. Não deixei que falasse mais, aflorou em mim toda a selvageria da noite do Rio de Janeiro: empurrei-o para sua cadeira, abri sua braguilha a emborquei o pau do ser amado da melhor forma que me ensinaram pelos becos da Glória na glória do êxtase; deleitei-me com cada sensação provocada nele e ejaculei na minha calcinha junto com ele. Naquela hora fui uma puta promíscua, fui mulher. Era o mundo livre que sempre sonhei!

– Poxa, seu Epifânio… – Murmurou Iglesias. – Que romântico!

– Terminado o “serviço”, saí daquele escritório e daquela casa. Corri para meu apartamento em Marechal Hermes, tomei o mais demorado banho de minha vida, buscava limpar minha alma, nunca tinha encarnado uma vadia sem caráter tentando roubar o marido de uma boa mulher antes; sinta-me suja. – Epifânio deixava rolar as palavras em profusão.

E continuou. – Daí começou meu processo de formar uma nova personalidade: a figura masculina de Ariovaldo reforçou os fantasmas da minha educação, da formação da minha vida. Não queira mais ser um travesti, não queria mais ser homossexual: a partir daquela confrontação passei a desejar ser homem, ser macho como meu amado. Isso por que fiz o que fiz. Defrontei com um modelo de masculinidade à minha frente. Como o amado era a perfeição apropriei-me disso almejando ser exatamente como o arquétipo!

– Cumaquié? – Retorquiu o inspetor.

– Um arquétipo, seu burro: padrão, modelo psicológico para a formação da personalidade. – Seguiu em tom professoral Epifânio. –Eu passaria a ser homem executivo, constituiria família e teria quatro filhos como Ariovaldo.

– Por isso procurei o Pai Três Soluções do Terreiro dos Cinco Caboclos. Ele, como sempre, apresentou as três soluções para eu iniciar os trabalhos com o orixá ao qual ele servia como cavalo de santo: eu viraria homem rico, homem classe média ou homem pobre. Oras, optei por ser um homem da alta classe média baixa para ficar no consenso do meio termo. Coitado do Pai Três Soluções, ele nem imaginava em que furada estava entrando ao aceitar minhas súplicas pela interseção com os orixás… Lamento muito, mesmo por que não previ o que aconteceria logo em seguida. – O queixume era pungente enquanto Epifânio contava esse caso.

A vida tem dessas coisas: Dayse era a sublimação das pulsões naturais de Epifânio, era seu eu assumido na teatro da vida; a promiscuidade não é inerente à opção, mas algo que faz o todo composto pelo o que o pessoa quer de si, enfim: o fato de ser travesti não fazia de Dayse uma promíscua, mas ela por si mesma sentia prazer dessa forma. Acontece que ao entrar naquela casa enfrentou a discriminação contra impostas ao seu eu. Se fosse uma mulher querendo roubar o marido de outra seria uma recriminação com um peso diferente de ser transformista querendo o mesmo.

Incorreções à parte, a discriminação é suportada como uma anormalidade e isso interfere na harmonia interior de quem a sofre. Epifânio nunca antes tinha sentido o preconceito, porque sempre foi e quis ser autêntico em seu meio, a noite, onde permaneceu cercada pelo seu habitat, – salvo, claro, casos esporádicos de homofobia aos quais tinha a seu dispor uma rede de segurança formada por clientes e por cafetões.

Muito diferente era assumir o papel de fêmea fatal em conquista do seu amado.

E mais: tão profundo era sua admiração que fundira o desejo de ser o amado.

– Então, chegamos a esta fatídica noite: o que aconteceu na frente do terreiro de macumba? – Perguntou ansioso e pejado de preconceito religioso o inspetor Iglesias.

– Ariovaldo me seguiu até o Jabiri. Disse que estava totalmente apaixonado por mim, que me desejava como nunca desejara ninguém em toda a sua vida. Disse a ele quem eu era (que não era mais quem sempre fui) passando a ser homem pela admiração que tinha me inspirado. Não mais desejava o esmo sexo.

E prosseguiu filosófico: – O que sempre sonhei nunca esteve no sexo senão em me transfundir com o que amo. Eu sou o Epifânio (foi quando tirei minha peruca e os cílios postiços. -“Você…” – Estupefato balbuciou Ariovaldo. – Sim, eu! – respondi. – E digo que sempre o desejei até encontrar o verdadeiro sentido da vida: ser você. Por isso, não serei seu, serei um executivo de sucesso, terei minha família e, assim, amarei para sempre!

O inspetor ouvia as divagações existenciais do depoente com a cara alongada parecendo haver uma bigorna de dez quilos colada a seu queixo, só podia pensar e falar “caramba!”.

– Depois de me identificar e expor o que quero da vida, Ariovaldo enlouqueceu; enraivecido veio na minha direção para me arrebentar de porrada. O babalaô interviu tentando de toda forma contê-lo e, por isso, levou dois socos na cara no meu lugar; quase caiu no chão nocauteado, porém, insuflado pelo sentimento de apaziguamento (ou manter o cliente), permaneceu em pé. Foi quando os policiais apareceram e como sempre formados pelo preconceito foram pra cima de mim como se eu fosse o agressor.

Naquele momento, Iglesias entendeu tudo: apesar da indiferença provinda da repetição do seu trabalho conseguiu pela primeira vez na vida entender que nem tudo é o que parece ser, que muitas vezes a vítima é o criminoso e vice-versa, principalmente quando havia questões tão sensíveis como escolhas íntimas e frustrações repetidas pela repressão moral.

– Vou reclassificar aqui os atores do fato delituoso: você passa a ser vítima e Ariovaldo passa a ser o suspeito. – Afirmou ao depoente já iniciando as mudanças em seu relatório do procedimento investigatório. – Nem quero ver a surpresa da esposa dele quando houver a intimação. – Arrematou com a expressão símia da libertinagem.

– Obrigada… quer dizer… Obrigado, inspetor. – Contentou-se Epifânio em sua nova pessoa e despediu-se da Delegacia.

Mais tarde, antes de encerrar seu plantão, o inspetor Iglesias, após pensar nos avanços das novas leis obrigando o servidor de segurança pública a respeitar a dignidade das opções sexuais das pessoas, escorregou na peruca que Epifânio esquecera ao lado de sua escrivaninha e praguejou:

– Mas que bicha safada!