MINERAÇÃO

Por Jacqueline Melo e Michele Marinho

 

Relatos incluem desde doenças de pele, ansiedade e depressão até a perda de vontade de viver. Quem são as mulheres vítimas da mineração, e como a atividade alterou seus modos de vida e de existência?

 

“Quando um crime desse porte acontece, não há outro grupo mais afetado, com dimensões tão mais dramáticas, do que as mulheres”, aponta Leila Regina da Silva, analista da gerência de Socioeconomia e Cultura do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), com sede no município de Viçosa e atuação em diversas cidades mineiras.

O estado de Minas Gerais sofreu nos últimos anos com dois desastres-crimes de grandes dimensões: o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (2015), que foi o maior desastre ambiental do Brasil, e o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (2019), considerado o de maior impacto social da nossa história. Os danos decorrentes desses crimes ambientais ainda afetam a vida de milhares de mulheres, mesmo as que vivem a quilômetros de distância de onde a lama alcançou.

Apesar de a mineração ser responsável por cerca de 8% do PIB estadual, com receitas bilionárias – em 2021, somente a Vale teve lucro recorde de R$ 121 bilhões —, os  efeitos da instalação dessas atividades nos territórios gera alterações muito significativas nos modos de vida e de sustento das comunidades como um todo, porém com danos mais graves para as mulheres atingidas.

É o caso da vendedora Fernanda, de 42 anos de idade, ex-funcionária do Shopping da Minhoca, região comercial de itens para pesca, às margens da BR-040, no município de Caetanópolis, Minas Gerais. Ela conta que, desde fevereiro de 2019, após o desastre-crime de Brumadinho, a pesca está proibida no rio. Com a falta de clientes no local, Fernanda, assim como outros funcionários, foram demitidos.

 

Fernanda Soares, vendedora do Shopping da Minhoca, em Caetanópolis/MG

 

“Eu chego hoje em dia bem abalada, porque ainda tomo vários tipos de medicamentos, antidepressivos, para transtorno de pânico, para controle de ansiedade. Inclusive, no decorrer desse tempo, eu ganhei fácil uns 25, 30 quilos. É questão de muita ansiedade, eu já cheguei a passar mal, a ficar sem comer, e ainda assim engordar devido ao meu grau de ansiedade.”, diz Fernanda Soares.

“De uma hora pra outra eles [os pescadores] começaram a sumir, porque não tinha mais sentido você ir relaxar na beira de um rio em que você não podia mais ter acesso. […]  Que alegria você tinha de ir pra beira de um rio, que você via com a água límpida, para vê-lo totalmente poluído? Isso é uma facada no coração de qualquer pessoa que tá acostumada com aquilo ali”. 

Fernanda faz parte da Comissão de Atingidos do Shopping da Minhoca, e diz que o recebimento das primeiras parcelas do Programa de Transferência de Renda da Vale (PTR), em abril deste ano, foi fruto de muita luta e reconhecimento dos trabalhadores como “povos e comunidades tradicionais”. O rio Paraopeba está a mais de um quilômetro dessa região comercial, e por isso a comunidade não era reconhecida como atingida. 

“Ao contrário do que muita gente pensa, não é porque não fomos alcançados literalmente pela lama que a gente não é atingido, mas fomos atingidos na nossa dignidade, porque o Shopping da Minhoca é uma comunidade que se auto sustentava. Fomos atingidos neste ponto, a partir do momento que muita gente se endividou e está assim até hoje”.

 

“Barraca da Marilei” no Shopping da Minhoca, Caetanópolis/MG

“Nós não somos prejudicados com a lama do lado de fora, mas vai sentar e conversar com cada pessoa dali daquele cantinho, que vocês vão ver. A lama de fora não tem nada, mas em compensação, por dentro, a lama tomou conta”, conta a vendedora.

Quem são as mulheres atingidas? 

“Nós estamos falando de mulheres que são negras, jovens. Falamos de camadas de vulnerabilidade, de violações. É importante olhar para cada uma delas nesse lugar. Porque mesmo quando falamos de mulheres, não falamos de forma homogênea. Falamos dessas diversidades, das facetas. Uma coisa é falar de uma mulher branca, outra coisa é falar de uma mulher negra”, explica Leila Regina da Silva, analista da Gerência de Socioeconomia e Cultura do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab).

Entre junho e agosto de 2021, foi feita pela primeira vez uma pesquisa específica para entender os danos às mulheres. O “Boletim Mobilização: ser mulher atingida”, foi realizado pela Assessoria Técnica Independente (ATI) do Nacab.

Segundo Leila Regina, apesar de as famílias estarem devastadas, são as mulheres quem mais sofrem, porque “passam a segurar uma pressão muito maior, dentro da dimensão do cuidado, que socialmente é designada à mulher. Os homens e filhos estão mais presentes dentro de casa, dobrando a demanda de trabalho da mulher, se é ela que está no cuidado da casa. São mais horas gastas com arrumação e limpeza, nesse processo de adoecimento”.

Na mesma pesquisa, foram entrevistadas 1084 pessoas, moradores da denominada região 3.

 

Municípios da Região 3 da Bacia do Rio Paraopeba – Fonte: Nacab

O boletim aponta que, do total dos atingidos, 47,8% são mulheres, 57,3% se autodeclaram negras, 47,8% têm idade adulta e produtiva (entre 30 e 59 anos) e possuem baixa escolaridade, sendo que 34,8% têm ensino fundamental incompleto. 

Em relação à renda e autonomia, o boletim aponta um endividamento de 20,2% das mulheres da região 3, além do aumento significativo em despesas básicas como saúde (44,2%), transporte (37,5%) e alimentação (58,2%). 

Cerca de um quarto dessas mulheres perderam o trabalho (22,8%), enquanto a maior parte delas teve parte da renda reduzida (52,2%), passando a depender do pagamento emergencial da Vale. A maioria delas não é atendida por políticas públicas ou programas sociais (74,4%).  

Quase metade dessas mulheres (45,7%) passaram a ter contato direto com poeira e lama, aumentando a carga de trabalho na limpeza e na manutenção do lar.  Mais de 40% das mulheres perceberam o aumento do fluxo de estranhos na vizinhança, o que ocasionou insegurança e medo de situações de assédio e outras violências. 

 

Maria de Lourdes Honorato, cabeleireira e cozinheira, moradora de Taquaras, MG.- Foto: Jacqueline Melo

 

“Eu tomo remédio anti-depressivo, não durmo direito. O meu estabelecimento fica na avenida. Os caminhões descem e sobem, e tem aquela poeira que você fica respirando. Não é como antes minha respiração.. […] Antes do rompimento da Vale a gente tinha um lugar, era tudo mais natural para nós. Hoje não, você caminha insegura, porque sabe que está se alimentando de uma poeira quimica”, diz Maria Lourdes Honorato.

Natural de Belo Horizonte, Maria de Lourdes decidiu se mudar para a comunidade de Taquaras, no município de Esmeraldas, região metropolitana da capital mineira, em busca de qualidade de vida. Ela trabalhou como cabeleireira por 28 anos e, durante a pandemia, decidiu migrar de ramo: abriu seu próprio restaurante, onde cozinha e vende quitutes produzidos no local. 

Desde o desastre-crime de Brumadinho, o Rio Paraopeba, que fica a menos de um quilômetro de sua casa, foi contaminado, alterando toda a dinâmica de vida da comunidade, especialmente a das mulheres. 

“Hoje o que eu vejo é as mulheres de Taquara dentro de casa, porque elas eram pescadoras. Hoje elas vivem em casa depressivas, já não vêm mais no salão fazer o cabelo como antes. Às vezes também porque não tem mais recurso, que vinha dos peixes. Vivem à base de remédio, tomando em casa. Eu vejo as mulheres de Taquara doentes, porque nós não temos lazer, não temos nada”. 

Maria de Lourdes vive numa chácara e relata que as frutas e verduras que cultiva estão apodrecendo e não amadurecem mais. “Antigamente eu não comprava verduras, elas eram colhidas aqui. Tudo o que eu me alimentava era puro, não tinha química nenhuma”.

 

Maria de Lourdes Honorato segurando frutas que não vingam, Taquaras 2022 – Foto de Jacqueline Melo

 

Ela conta que, em janeiro de 2022, a enchente que atingiu o Rio Paraopeba causou danos mais extensos à comunidade do que o rompimento de Brumadinho. “A beira do rio hoje ficou tão perigosa. Tem um lugar onde atingiu mais, em que as casas caíram, onde a enchente passou e pegou aquele rejeito com areia, com tudo. Quando você chega nesse local, que é perto da minha casa, a sua tristeza é total. São mansões, casas lindas, jardins, e hoje você não vê mais nada”.

Protesto de uma família que teve sua propriedade prejudicada pelo rompimento da Barragem de Brumadinho em Taquaras, MG – Foto: Jacqueline Melo

 

O crescimento da mineração e a exportação de commodities 

A área minerada no Brasil em 2020 foi seis vezes maior do que a reportada em 1985, passando de 31 mil para 206 mil hectares, representando um aumento de 600% nas últimas três décadas e meia. Os dados são da organização MapBiomas, coletados por imagens de satélite, utilizando a inteligência artificial. 

Projeto MapBiomas: mapeamento da superfície de mineração industrial e garimpo no Brasil. Fonte: MapBiomas.org

De acordo com o mapeamento, o Estado ocupa o segundo lugar em área total minerada, totalizando 33.432 mil hectares. O minério de ferro, principal item de exportação estadual, representa 1/4 do total dos minerais extraídos no Brasil.  

Os avanços tecnológicos têm impulsionado a produtividade do minério de ferro. De janeiro a dezembro de 2021, Minas Gerais foi responsável por 41% das vendas externas brasileiras desse minério, com arrecadação de US$15 bilhões.

A grande demanda por minério de ferro motivou o aumento na produção e também a ampliação da construção de barragens de contenção de rejeitos, erguidas frequentemente com o uso de métodos que não garantem segurança ao ecossistema.

O estudo do MapBiomas aponta ainda o crescimento da atividade de garimpo, muitas vezes realizada de forma clandestina, com o uso de metais potencialmente tóxicos. Com a  flexibilização da legislação ambiental nos últimos anos, este tipo de garimpo tem avançado sobre territórios indígenas e unidades de conservação. 

Comunidade tradicional Garimpeira

Existe uma outra forma de garimpagem, de leito de rio, feita de forma artesanal e tradicional, muito comum em regiões como no município de Antônio Pereira, no distrito de Ouro Preto.

 

Entrevista na casa da garimpeira Ivone Zacarias, em Antônio Pereira, no distrito de Ouro Preto/MG. Foto: Jacqueline Melo

Segundo a garimpeira Ivone Pereira Zacarias, a atividade não é prejudicial ao meio ambiente, “porque nós não trabalhamos com maquinário, nem com mercúrio […], porque polui o rio, acaba com a natureza, com os peixes e com a nossa saúde. O mercúrio é um veneno. O que causa mesmo danos é a mineradora, porque é maquinário, é buraco, é poeira acabando com as plantas”.  

Nascida e criada em Antônio Pereira, Ivone, de 52 anos, aprendeu a garimpar aos 11 anos de idade com os pais, e ensinou o mesmo ofício aos filhos e aos netos, como uma garantia de subsistência. 

No mês de maio, os garimpeiros da região foram detidos e tiveram suas ferramentas apreendidas por uma operação da Polícia Federal, a mando da Vale. Desde então eles estão impedidos de trabalhar.  

“Você não tira muito ouro no garimpo, você não vai ficar rica. Mas você vai de manhã, e de tarde já tem um pouquinho de ouro pra comprar um pacote de feijão, fubá, arroz, biscoito, leite, que  às vezes o seu filho pede e você não tem. E o que a Vale está querendo? Que todo mundo da nossa comunidade vire bandido?”

 

Ivone Zacarias, na sua área de garimpo em Antônio Pereira, no distrito de Ouro Preto/MG. Foto: Jacqueline Melo

 

Ivone conta que os empreendimentos minerários estão presentes na região onde vive há mais de 20 anos. E destaca que o município tem sofrido com a “lama invisível”, devido ao medo de rompimento da Barragem Doutor, da mineradora Vale.

“Porque a Vale pode minerar, acabar com nosso minério, nosso ouro, e nós, que somos do lugar, não podemos garimpar?[…]. Ela não está nos matando com lama, como fez em Brumadinho, por enquanto, pois a barragem não rompeu. Mas está nos matando de depressão, estamos todos doentes aqui. Tem idoso tomando medicamento, criança com problema gravíssimo, e essa coceira que temos no corpo, desse pó, desse rejeito”, relata a garimpeira. 

Para Laís Jabace, coordenadora do processo de cadastramento dos atingidos da Cáritas em Mariana, a garimpagem de leito é um complemento de renda ou uma renda central para várias famílias, e é uma atividade que tem uma relação profunda com o ambiente e com a comunidade no entorno. A Cáritas é uma confederação internacional humanitária da Igreja Católica, que promove ações de solidariedade às comunidades afetadas por desastres socioambientais ou em situação de vulnerabilidade. 

“A economia que gira em torno dessa garimpagem é local, desde o maquinário que eles usam, os instrumentos que são feitos, construídos e comprados ali. […] Essa população compra e consome na região, o que é completamente diferente da mineração de uma grande corporação. Tanto em termos de insumos para a atividade, quanto em termos de para onde vão os recursos. O lucro, o faturamento, não é reinvestido na região, mesmo que tenha como parte dos processos possíveis descontos em impostos para políticas de responsabilidade social”, diz Laís. 

A exportação de commodities

Para a advogada popular Larissa Vieira, integrante do Coletivo Margarida Alves de assessoria popular e da Rede Nacional dos Advogadas e Advogados Populares (Renap), o estado de Minas Gerais vive atualmente um acirramento dos empreendimentos minerários devido à escolha por um modelo essencialmente minerador e exportador de commodities. 

“Mesmo diante do contexto em que a gente vive, de falência desse modelo, a partir do rompimento de duas barragens de rejeitos, gerando prejuízos e danos de grandes proporções para essa população, vemos que o estado nem assim recuou, em termos de tentar buscar alternativas econômicas para o nosso estado”, avalia.

Larissa aponta que a legislação ambiental estadual foi flexibilizada, mesmo após o rompimento da Barragem do Fundão, em 2015. “Isso é um fator muito agravante, que faz com que a entrada dos empreendimentos seja facilitada, muitas vezes a custo de violar direitos das comunidades, de não ouvir a população, em relação ao que a população considera importante, em termos de modelos de desenvolvimento”. 

Saúde e Justiça Reprodutiva

A Justiça Reprodutiva é uma ferramenta para a garantia da cidadania e dos direitos das mulheres e de suas comunidades, pois focaliza a vida sexual e reprodutiva através das lentes da justiça social. 

O conceito de Justiça Reprodutiva foi desenvolvido em 1994, no contexto da Conferência de População e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas, realizada no Cairo, considerada um marco para a definição internacional dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Na prática, a Justiça Reprodutiva é uma ferramenta para a garantia da cidadania e dos direitos das mulheres e de suas comunidades, pois focaliza a vida sexual e reprodutiva através das lentes da justiça social. 

Como explica a professora da Universidade Federal de Goiás, Mariana Prandini Assis, “mulheres negras se mobilizaram para denunciar que a lógica individualista da escolha subjacente à demanda por direitos sexuais e reprodutivos era insuficiente para responder às injustiças que marcavam suas vidas. E por isso reivindicaram o direito de ter filhos, de não ter filhos, mas também o direito de criar seus filhos em comunidades sadias e sustentáveis, com dignidade e respeito”.

Segundo a advogada Larissa Vieira, a noção de Justiça Reprodutiva “traz a perspectiva de corpos livres, de pessoas livres para escolher sobre o seu destino, com autonomia, dignidade corporal, que inclusive nunca vai ser alcançada nesse contexto dos grandes empreendimentos. O próprio estudo de impacto ambiental não pensa nas mulheres. Às vezes até detecta que vai ter um impacto para elas, mas não é pensada nenhuma medida alternativa para isso”. 

Territórios e Ecossistemas: Justiça Reprodutiva Ambiental

A Justiça Reprodutiva abrange uma visão ampla sobre o meio ambiente, incluindo algumas condições necessárias para que as pessoas possam tomar  decisões: salários adequados, acesso à saúde, educação de qualidade, habitação e segurança, entre outras. 

O acesso às condições materiais e socioeconômicas é necessário para que as mulheres tenham dignidade sobre as suas escolhas, como a de ter ou não ter filhos, e como cuidar destes em comunidades sustentáveis. 

Dessa forma, a Justiça Reprodutiva pode ser pensada de forma territorializada, em relação às lutas que acontecem nos territórios. Segundo a professora Mariana Prandini Assis, nos últimos anos vem ganhando força, a partir da elaboração dos movimentos indígenas das Américas, a noção de Justiça Reprodutiva Ambiental, integrando paradigmas da justiça reprodutiva e da justiça socioambiental. 

Para a professora, esse novo olhar requer “avaliar os impactos socioambientais de modo a incluir também os danos aos processos, sujeitos, elementos e espaços de reprodução da vida, isto é, os corpos individuais e coletivos, a cultura e os símbolos sociais, a sexualidade e a reprodução, e a capacidade de indivíduos e comunidades exercerem sua liberdade reprodutiva com dignidade”. 

Como viver sem o rio?

No contexto dos grandes empreendimentos, como as mineradoras, todo o ecossistema, incluindo as formas de vida humanas e as não-humanas, é impactado. 

Leandra Moreira, de 25 anos, é pescadora e moradora do Retiro dos Moreira, povoado com cerca de 200 habitantes, em Fortuna de Minas (MG), que foi reconhecido há dois anos como comunidade remanescente de quilombo. Ela relata as mudanças ambientais e sociais ocorridas no seu território após a contaminação do rio Paraopeba. 

“Nós tínhamos muitos pescadores aqui, e isso fazia um movimento enorme na comunidade. Os pescadores vinham e davam peixes pra gente, quando não dava pra irmos no rio. Minha casa é uma das mais próximas [do rio], então eles compravam ovo, galinha, verduras. Traziam coisas pra gente também da cidade quando vinham”, diz Leandra.

 

Leandra Moreira, moradora do quilombo Retiro dos Moreira, em Fortuna de Minas/MG – Foto: Jacqueline Melo

Leandra comenta que a degradação do rio levou à perda de um espaço essencial para a diversão e a sociabilidade da comunidade. “Lazer aqui era divino! Final de semana era certeiro, estavam todos no rio. Seja pra poder pescar, nadar. Às vezes a gente ia só pra sentar na beira do rio e comer uma farofa, ou então pescar um peixe e comer ali na hora”.

 

Margens do rio Paraopeba, em Retiro dos Moreira, município de Fortuna de Minas/MG – Foto: Jacqueline Melo

“Ser uma mulher atingida num lugar desse é complicado. Porque quem tem voz são os homens. Nós mulheres somos as últimas a serem ouvidas. Se a gente não se unir, a gente não consegue nada”.

Leandra relata que, antes do rompimento, as mulheres costumavam sair, e agora passam os dias dentro de casa. “E se é uma mulher que não gosta de ir pro bar? Que gosta de pescar, igual muitas aqui na comunidade. Muitos açudes que têm peixes estão dentro de fazendas. Não são todos que podemos chegar e pescar, tem que ter autorização. E o rio não, o rio é livre. Perdemos esse cantinho das mulheres”.  

Ecotecnologias: é possível pensar na retirada da lama dos rios?

Sobretudo nas últimas décadas, a indústria da mineração vem depositando no leito dos rios grandes volumes de metais potencialmente tóxicos, contaminando as águas e os animais, tornando-os impróprios para o usufruto e consumo.

Professora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e coordenadora do Laboratório de Educação Ambiental e Pesquisa (Lauepas), a arquiteta e urbanista Dulce Maria Pereira defende a retirada da lama pelas empresas mineradoras.

“Elas [Vale e Samarco] bateram o pé dizendo que não iam retirar a lama porque poderia fazer mais mal pro rio. Não é verdade, porque a lama fica lá por um tempo indefinido. […] Você tem mudanças terríveis, principalmente com o arsênio, que provoca mutações em peixes. Tem um ‘casamento’ desses materiais e metalóides com o material inorgânico do fundo do rio, e vão se criando mudanças muito grandes nesse habitat ao deixar a lama no local”. 

A professora reconhece que os processos necessários para a retirada da lama poderiam causar danos, mas defende que o rio, infelizmente, já está “praticamente morto” pela lama. “Então você retira, deixa o rio em paz, que ele vai se recuperando lentamente num prazo de muitos anos. Daqui a 30 anos nós vamos olhar os problemas da lama, mas  poderíamos olhar para um rio renascendo”, compara Dulce, defendendo o potencial da ecotecnologia – ciência que integra os campos da ecologia e tecnologia, com foco em soluções sustentáveis, procurando reduzir os impactos ambientais.  

“Em vez de retirar as pessoas do contato com o metal potencialmente tóxico, poderiam retirar o metal dos locais onde estão as pessoas. Isso entra nas ecotecnologias. Uma mineradora do tamanho da BHP, Vale e Samarco dizer que não consegue retirar a lama… Isso seria o ‘Elementar, meu caro Watson’ que deveria ter acontecido e ponto”, avalia Dulce Maria Pereira.  

 

“As corporações, do tamanho que são, conseguiram aspirar isso [a lama] de olhos fechados. Vocês sabem que eu sou dessas áreas técnicas, então eu chamo o que se pratica de necroengenharia, engenharia da morte, que é igual a necropolítica. Porque? Porque não é uma engenharia para a vida”.

A necroengenharia mencionada pela professora diz respeito à engenharia de baixa qualidade, que causa riscos visíveis e grotescos no tratamento do ambiente e das riquezas locais. A partir do uso de tecnologias inadequadas, portanto, a necroengenharia vai de contramão às possibilidades tecnológicas existentes na engenharia contemporânea. 

Neoxtrativismo e Racismo Ambiental

O processo de extrativismo mineral surge em um contexto de conquista e colonização da América, e se consolida com a globalização do capital. “O extrativismo e o neoextrativismo são inseparáveis do capitalismo, é uma característica estrutural. E junto com essa característica vem somada a própria lógica colonialista, racista, patriarcal”, aponta a advogada Larissa Vieira.  

“O modelo extrativista estimula a dominação, esse processo de alienação, a partir do momento que ele desconsidera, desumaniza as pessoas dos territórios”, acrescenta a advogada.   

Para a professora Dulce Maria Pereira, o processo de extração mineral é permeado por uma “perversidade extraordinária de racismo ambiental”, utilizado para dividir as comunidades. “As casas que tiveram menos investimentos da empresa, a falta de água, tudo isso é pior para as populações negras. Fora as comunidades de matrizes africanas, que perderam literalmente toda a base natural dos fundamentos. É uma perda imaterial imensa. A água, a erva, a planta, o ar, que é como se organiza o material utilizado para o contato e para as relações espirituais”.

“Eles não retiraram a lama do rio, o que já é péssimo, mas porque não removeram a lama dos quintais? É geralmente nos quintais negros que tem a lama”, questiona a professora.

 

Racismo Ambiental em Mariana e Barra Longa. Fonte: PEREIRA, Dulce Maria (org). PERDAS ECOSSISTÊMICAS: Barra Longa atingida pela ruptura da barragem de Fundão da SAMARCO/VALE/BHP BILLITON

 

Simone Silva, 44 anos de idade, é moradora de Barra Longa, a 60 km de Mariana. Ela é professora de artes e tem uma filha, Sofia, de 7 anos de idade, que foi contaminada pelos rejeitos tóxicos aos 9 meses de vida. Em 2015, como Simone jamais vai se esquecer, o município foi tomado pela lama do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana.

 

“Enquanto eu tiver vida, vou continuar nessa luta e resistência, que é dar voz ao meu povo sofrido, aos atingidos por barragens, principalmente as mulheres negras. Se eu posso ocupar um espaço de fala hoje, numa sala de aula como professora negra, é porque outras vieram antes de mim e fizeram essas lutas. Quantas gotas de sangue, quantas carnes foram retalhadas em praça pública para que eu pudesse falar hoje? Isso não veio de mão beijada”.

 

Simone se tornou militante do Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB) após o crime da Samarco, Vale e BHP. Sua causa é a luta pelo tratamento de saúde da filha e de toda a sua comunidade. “Você não milita só por você. Existem outras Sofias ao longo da bacia do Rio Doce”.

 

Barra Longa (MG) – Rio Gualaxo do Norte, após a tragédia do rompimento da Barragem de Fundão, da mineradora Samarco (FONTE: José Cruz/Agência Brasil. 31/10/2017)

 

“A justiça é uma máquina de fazer dinheiro para os assassinos e os criminosos. Mas, para as vítimas, não: a justiça só existe para retirar direitos e puni-las. Porque nesse processo das mineradoras, as vítimas passam a ocupar o lugar do bandido, e as mineradoras, como a vítima. Os papéis são invertidos nesse processo de ser atingido por mineradoras”. 

“Eu até espero que se chegue à empresa pedir perdão para as pessoas, num processo desses. Isso vai aliviar a alma de um monte de gente. Só isso, é uma coisa fundamental. Olha a forma como essas pessoas são tratadas pelas empresas, pelos seus advogados, por todo mundo. […] E há a desqualificação. Eu estive em várias audiências públicas que eu vi como desqualificavam as pessoas. E isso é bastante sério”.

O futuro das mulheres atingidas 

“A mineração não tem limites, do ponto de vista das suas estratégias. Por exemplo, não é por acaso que raramente se contratam pessoas da mesma cidade onde se está fazendo a mineração, para que elas não tenham conhecimento dos processos da realidade, e menos ainda do que se projeta para o futuro […].  Há o exercício de uma manu militari, de um poder técnico e tecnicista que desqualifica os poderes locais. E promessas, sedução, que hoje a gente falaria na fake news da mineração.  As pessoas ficam muito inebriadas com a possibilidade de um desenvolvimento que nunca vem”, avalia a professora Dulce Maria Pereira.

Segundo ela, os direitos constituídos têm sido retirados, como o direito à água, à reparação, ao tratamento de saúde e à moradia. Ela acredita que se houver uma ação séria do Estado e a mobilização dos atingidos, com engajamento de intelectuais e ambientalistas, “haverá uma possibilidade de retomada do território, com técnicas e práticas ambientalmente muito mais adequadas”. 

A cabeleireira Maria de Lourdes, fala sobre seus desejos a curto e longo prazo para a sua Taquaras. “Eu queria que nós voltássemos a ser felizes de novo. Queria que eles trouxessem recursos para nós, uma academia ao ar livre para as mulheres. Um posto de saúde que não temos na nossa comunidade. Aqui, se adoecer alguém, ou socorre com o vizinho mais próximo ou vai morrer”, diz.

Moradora de Barra Longa, Simone Silva diz que pouco foi feito nos últimos anos como medidas de reparação e acredita que o cenário atual do país contribui para essa situação. “Sete anos depois, o que mudou? O que aconteceu? Mudou alguma coisa nesse cenário? Não. Só mudou a maneira, as formas, as violações de direitos, as retiradas de direitos”.

Em sua visão, também falta reconhecimento da própria sociedade em relação à luta dos atingidos por barragens. “As pessoas não entendem o que é militância, o que é movimento social, pra muita gente é só bando de vândalos, essas coisas. Porque o olhar que as pessoas têm do movimento infelizmente é esse, ainda mais nesse período que estamos vivendo do Brasil. Então o movimento, hoje, é mais vandalizado e mal visto”. 

A garimpeira Ivone Pereira também fala também sobre a retirada de direitos de quem vive em sua comunidade. “Eu queria que a Vale tivesse misericórdia de nós. O que está faltando agora ela fazer – porque já tirou nossos direitos todos – é mandar passar um helicóptero e jogar uma bomba para acabar conosco de vez.”.

Para a pescadora quilombola Leandra Moreira, as empresas mineradoras deveriam ter mais consideração pelas pessoas e as comunidades atingidas. Ela sonha com opções de lazer para sua comunidade, além de um campo de futebol para os meninos, aulas de costura e pintura, cursos de tratorista, de plantio, de horta e “de fazer doce”.

“Para fazer justiça, eles tem que conhecer onde erraram. Muitas vezes a Vale nem sabe, falam uma coisa pra um, outra coisa pra outro. Pra fazer justiça na minha comunidade, eles teriam que vir aqui e ver o que estamos passando. Vir e trazer água para todos, para o gado de todos. Trazer um espaço de lazer para a comunidade. Já que eles destruíram o rio, poderiam tentar melhorar o convívio e o ambiente aqui dentro”, completa Leandra.

Apesar de ainda muito abalada, a vendedora do Shopping da Minhoca, Fernanda Soares, fala sobre a importância da esperança de um futuro melhor para os atingidos e as atingidas. “Nós temos pelo menos a esperança de sonhar que um dia vai ter uma recuperação [do rio], se não total, porque é quase impossível, mas pelo menos um pouco, mas se a gente largar de mão, aí é que não teremos nada. […] Porque sonhar é gratuito”.