CRÔNICA

Por Guilherme Maia 

 

E no céu vi uma grande luz

como a explosão de um milhão de megatons

e ouvi uma voz que me disse: Liga esse rádio

e liguei o rádio e ouvi: CAIU A BABILÔNIA

CAIU A GRANDE BABILÔNIA

E todos os rádios do mundo davam a mesma notícia

E o anjo me deu o cheque do National City Bank

e me disse: Troca esse cheque

e em nenhum banco o pude trocar porque todos os

bancos haviam falido”

(ERNESTO CADERNAL)

Dedicado ao grande Leonardo Boff

E seus esclarecimentos à fé,

à filosofia e à vida!

 

Aquele dia foi diferente!

Quando chequei em casa depois de encarar dragões, leões, zebras e hienas, abro a porta, vou ao interruptor e me surpreende a luz não acender. “Caceta! ” Brado impotente ao infinito – como um poeta romântico que acaba de topar em uma pedra – claro que a luz não vai acender, não paguei a conta!

Sem energia elétrica já às dez da noite nada me resta e lamentar não adianta; a não ser que fosse o Yom Kippur e a Light fosse tomada de arrependimentos por impedir que eu acesse a internet! O que é a vida sem o meio digital? Nada! Sem barra de rolagem reina o vazio e é assim que me sinto: sozinho num mundo sem sentido – meus dedos sem ter o que “arrastar”.

É em vão que passo o indicador em sentido horizontal nas paredes. Nada substitui a divindade da tela do celular. Sem Internet os sentidos se esvaziam como bexiga de pinguço. A indiferença toma conta de tudo à minha volta e pouco me importa se vêm tiros perto do meu prédio (quero ver as atualizações de meu Chat).

De qualquer forma vou até a janela e observo envolto pela cortina que os Queridões de Vila Valqueire, nova organização para “segurança comunitária” (e de fornecimento de gás e transporte urbano), estão “expurgando” – palavra usada pelo líder deles, o Javert de Quintino, – os garotos de Barão City, que vieram para tentar garantir algum.

Saraivada de balas: fuzis, espingardas calibre 12 e escopetas. Vai tiro para tudo quanto é lado e a minha solidão, com os dedos convulsionando pela falta da barra de rolagem, pouco me atenta para esses contratempos mundanos, sinto a falta da epifania dos algoritmos.

De repente, três crivos de bala na minha janela, passam e perfuram as paredes atrás de mim, nada segura um projétil nos dias de hoje, – nem coração de mãe!

Ouço meu vizinho do andar de baixo se embrenhar em orações as mais devotas: “Cacete! ”, ele grunhiu como asceta orante a Deus. Homem de muita fé que costuma frequentar a igreja do Poço Fundo do Jacó. Comovente o senso religioso diante de um tiroteio.

O que aconteceu com o sentimento que animava ícones como Dom Hélder Câmara que meu avô, morador da Cruzada São Sebastião, tanto falava?

Agora são explosões que ouço e sinto por que estremecem minha sala: raios e estouros. Agudos de dó de peito de cantor sertanejo zumbem em meu tímpano! Deixo de ouvir por algum tempo.

Clarões me cegam, são morteiros lançando explosivos na Ucrânia brasileira… A que ponto chegamos aqui na Cidade Maravilhosa! Ó! Onde estás Garota de Ipanema!

As últimas arrebentações foram mais intensas e depois não consegui ver ou entender mais o que acontecia, somente restou o cheiro de pólvora e a ardência de metal queimado.

Sem perceber, por que já não percebia nada, sussurrei algumas palavras que soaram mais ou menos assim: “Paz para todos! Ai, meu anjo-da-Guarda, Deus é mais! Vem e me ajuda e, depois, vá em paz! Ai, meu Deus! ”

Da esquadria adveio uma luz mais forte do que a dos estouros direcionada do céu, provinha de uma das estrelas a mais radiante de todas as outras, o que já vinha chamando minha atenção antes de todo o desastre que começou depois que cheguei em casa.

Uma projeção no melhor estilo Guerra nas Estrelas arremessou uma figura com um facho de luz acima do pescoço, assim como nos membros superiores e inferiores. Possuía um halo sobre o que seria a cabeça e, de resto, não parecia com nada que eu ou qualquer um aqui em Vila Valqueire conheça.

Bem de longe lembrava o Silvio Santos.

Perdi totalmente os sentidos.

Algumas semanas antes, lá onde se convencionou chamar de Céu, houve uma discussão muito acalorada entre os Serafins e os Erelins. Os primeiros lançaram o objeto do debate: o que seria dos seres criados se as luzes de milhões de anos de algumas estrelas simplesmente apagassem, como uma passagem que sincronizasse tempo e espaço?

Isso irritou os Erelins, posto que eram valentemente nervosos, enquanto os Serafins eram ardentemente alterados.

Erelins entendem que o fogo sagrado dos orbes celestes é sacralizado e perene, não há a relação humana de tempo-espaço nesse quesito, o brilho é da vontade do Altíssimo e assim como esta última, a chama nunca se apagaria – tratava-se do sopro ígneo da vida cósmica.

Como a Terceira Tríade de Serafins já estava cansada, coube ao Agnaldus (serafim embaçado pelo excesso de discrição) manter as argumentações. Este Serafim era dado a um comportamento estranho, isso por que vinha de uma linhagem que acompanhou a nau São Gabriel que veio aportar na Terra Brasilis. Ficaram por aqui, pois apreciavam a Mata Atlântica e rememoravam os tempos de Paraíso terrestre, os tempos em que o Altíssimo caminhava nessas plagas.

Além disso, Agnaldo Serafim sempre estimou a forma com que as índias guardavam os costumes nudistas au naturel dos tempos edênicos – aquilo era uma beleza! Aliás, “que beleza! ” Fora muitas e muitas vezes repetido por ele nos futuros lundus, maracatus e carnavais do eterno suspiro de liberdade do povo brasileiro.

Com efeito, havia uma comichão auriverde que acometia o serafim sempre que ouvia “Eu quero aquela nega”, de Monsueto e “Na subida do Morro”, de Moreira da Silva; nos últimos tempos estava louco pelo Zeca Pagodinho e o Cacique de Ramos. Chegou a ser advertido pelo Altíssimo em 1957, quando inadvertidamente se reportou a Deus como “ô das Alturas! Como vai aí? ”.

Voltando ao debate sobre as irradiações estelares e sua perpetuidade ou finitude, Agnaldus passou a ter certo destaque entre os opositores, por que vinha com um novo posicionamento: pode ser que sim e ao mesmo tempo pode ser que não, depende do ângulo e do que rolar por fora. Os Erelins não entenderam o que seria “um por fora” tampouco os serafins, mas após um colóquio em apartado com o chefe Zafiel, conseguiu um desafio que seria definitivo para solução da questão: aumentar ao máximo a potência da estrela Canopus e, dependendo do resultado de intensificação de brilho no planeta Terra, calculariam sua duração ou, caso contrário, sua perpetuação.

Foi aí que em meio ao tiroteio entre a milícia e os garotos em Vila Valqueire, espocou o clarão celeste ofuscando até mesmo os morteiros lançados pelos Queridões. Agnaldus, em um momento de êxtase, desceu até meu apartamento para retirar informações da incidência da luz.

Por se tratar de um serafim meio arcano e meio brasileiro, veio para cima de mim com umas ideias esquisitas, coisas do tipo: “amigão, tu sabe de qual foi da luz que chegou aqui no teu canto? ”. Respondi que ficara desacordado depois da intensificação da claridade.

– “Saca só, cumpadi! A luz chegou pela direita ou pela esquerda aqui? ”, perguntou naquela malemolência de vereador nilopolitano do Céu.

– “Aí, meu chegado, se você cooperar no alvo, eu te acompanho di Da Guarda, sacou? ” – E, como num passe de mágica, a energia elétrica voltou na minha casa, assim como a minha razão de viver: a Internet e a barra de rolagem.

Imediatamente me ajoelhei perante Agnaldus e prestei-lhe adoração.

– “Ô, meu chegado, isso aí não vale, não! Eu sou apenas um serafim da Terceira. Aqui por estes cantos o pessoal não é ligadão em igreja? Tem mais igreja aqui do que mosquito! Não te ensinaram que é só um Deus e só um o Caminho da Salvação. Quer dizer, tem uma concorrência aí, mas o meu time é do Abraão Corporation, sacou?”

Fiquei aturdido com toda aquela verborragia sobre luzes e apostas angelicais sobre orbes e cosmos. Como Agnaldus tinha trazido a luz para meu apartamento, trouxe meu algoritmo de volta. Eu devia minha vida a ele.

_”Foi pela direita! ”, acorri a falar para o anjo ainda que não tivesse certeza absoluta, afinal ele prometera ser meu “Da Guarda”; eu tinha que fazer bonito para conseguir algumas vantagens.

– “Então, os Serafins meus chegados estão errados ma non troppo! O tempo se relativiza a ponto de deixar de ser frente à extensão do espaço. Não há o tempo no infinito do espaço e a luz traduz essa diluição pelo Cosmo. Eureca! ”

Eureca”? Isso lá é linguagem de anjo? Bem, após essas elucubrações suas, ele se voltou para mim e perguntou o que me faltava para ser feliz.

Respondi-lhe que queria ter quatro mulheres e que todas elas fossem amáveis e servis a mim como nos tempos do Rei Salomão.

Agnaldo me respondeu que aquele pedido era uma estupidez machista e que um homem tem que saber conquistar uma mulher por meios próprios e também saber se colocar em pé de igualdade ante um ser tão importante para a gênese e afeto e inteligência do mundo…. Eu disse que concordava, mas como o pedido era meu, eu mantinha minha clássica e tradicional ignorância.

Sorrateiramente, foram surgindo minhas companheiras: uma saiu da cozinha e três, do quarto.

Imediatamente as quatro se puseram à minha cerca. As carícias no começo foram extasiantes, mas logo passados dez minutos as quatro começaram a gritar e brigar entre si para ter a mim com maior exclusividade. Quando começaram a puxar cabelos e se dilacerarem com incisões de unhas agudas e cumpridas, eu pedi a Agnaldus que acabasse com aquele show de horrores.

O tom professoral assombreou aquela clareira que passava como a cara do serafim, e me disse:

Se você não se liga na realidade das características que o autogoverno traz ao equilíbrio dos seres humanos, você tem que se submeter à violência que advém do servilismo. Você queria mulheres subalternas à sua vontade; essa submissão produz a obsessão e o ciúme, sacou? Mas faz o seguinte, varão: pede uma coisa menos demente e eu dou um jeitinho aqui. ”

Aqui vai um aparte: vendo que eu era um clássico e tradicional cidadão de bem reacionário e cheio de todos os preconceitos possíveis de serem criados pela capacidade humana de explodir o planeta, Agnaldus Serafim aproveitou para tirar aquela vantagem básica de anjo que chegou com o Cabral e conheceu as trapaças mais incrustradas da História do Brasil.

Ele batia as asas e flanava quando os jornais da TV proclamavam a miserabilidade de crescimento de 0,6% do PIB como uma vitória. Presenciou a pena do escrivão Pero Vaz de Caminha ao relatar as belezas da descoberta ao passo que, com aquele jeitinho sacripanta tão querido, saiu pedindo vantagens a Manuel I, o Venturoso.

Observou a construção de Salvador a peso de ouro, em 1549. Quando o provedor-mor Antônio Cardoso de Barros, ao tempo em que ensinava os vindouros a sextuplicar licitação para construções públicas (no caso a da sede da Coroa Portuguesa ao preço de 1/3 dos cofres públicos), erguia para si um engenho.

E foi aprendendo o limite entre o espirituoso e a maldade gestora da miséria e da pobreza que ceifa a vida das pessoas, de crianças que morrem de inanição ou má nutrição.

E dá-lhe ministro do Meio Ambiente envolvido com tráfico internacional de madeira ilegal com apreensões nos EUA, mas também assistia à Marquesa de Santos cobrando propina para que seu amante Dom Pedro I nomeasse os pagantes a cargos públicos.

Dessa forma, Agnaldus era escolado na malandragem, nos seus aspectos folclóricos e hediondos e sabia jogar conforme as regras dos podres poderes brasileiros.

Nesse fio, quando eu pedia uma grana alta, por exemplo, dez minutos depois (sempre num intervalo de dez minutos vinha a desvantagem) aparecia um agente da Receita Federal na porta me intimando para esclarecer sonegação fiscal.

E por aí foi até que resolvi pedir que o Brasil se tornasse uma grande potência mundial e que não houvesse mais tanta miséria e fome no país…. Bem, ele regularizou a situação do meu título eleitoral!

Aquele anjo era bem brasileiro!