ARTIGO

Por Alfredo Soares

 

Nessa semana, na terça-feira, estive na praia de Manguinhos (340 km da capital) em São Francisco de Itabapoana, norte do Estado Rio de Janeiro e pude sentir a emoção de ter contato direto com meus ancestrais.

Escavando a areia pude pegar, com as mãos, partes de esqueletos de africanos trazidos ao solo brasileiro pelos traficantes de escravos em suas Naus. Em Manguinhos havia um Porto Negreiro clandestino. Homens e mulheres cruzavam o Atlântico sem direito de voltar à terra mãe. As condições sub humanas da travessia são amplamente conhecidas. Muitos morreram e foram jogados em alto mar, mas o que é preciso mesmo, nesse momento é preservar o sítio arqueológico e contar a verdadeira história dessa diáspora.

Inúmeras ossadas estão logo abaixo dos pés de quem passa por ali. Algumas estão em cima de outras. Na praça central de Manguinhos, contam os moradores, havia um tronco onde os traficantes tentavam domar aqueles que chegavam revoltados, à base do chicote. Exaustos e bravos, boa parte sucumbia. Seus corpos agora vem a tona revelando o passado, como almas que não descansam até encontrar seu verdadeiro leito de morte.

A praia é tranquila. Nada ali lembra um tempo frenético ou um período sombrio. O silêncio, o barulho das ondas e do vento, que sopra sem parar, imperam. Nenhuma edificação registra mais aquele tempo. Só mesmo o tropeçar ou pisar num resto mortal desperta a atenção. O problema é que muitos frequentadores da orla pegam ossos e levam pra casa como souvenir.

Em Manguinhos, que fica em linha reta com a costa da África, centenas de milhares de negros devem ter desembarcado. Isso há mais de 300 anos atrás. Dali partiam hordas de negros que, comercializados, viriam a desbravar os campos fluminenses enfrentando senhores feudais e seus capitães do mato, além de índios ferozes, que não se deixavam dominar.

Os negros que não resistiam eram jogados, mortos ou quase mortos, naquilo que foi identificado como Cemitério dos Escravos. Não sabemos se eram Bantos, Malês, de Angola, da Guiné ou do Congo. Não existem registros, posto que era clandestino. No tal cemitério, que fica ao lado de uma edificação de irmãs religiosas, não há nenhuma cruz. Só uma placa numa propriedade particular. A terra, como se vê, tem dono. Os ossos, não.

Segundo a historiadora Simone Pedrosa, moradora da vila de Manguinhos, muitas outras ossadas humanas foram encontrados na região e foram descartadas, mesmo com as autoridades sendo avisadas. O devido interesse público é fundamental para a preservação e exploração arqueológica.

Atualmente a prefeitura de São Francisco, pesquisadores da UENF, UFF e UFRJ tentam, junto ao IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional) recursos e apoio para manutenção do sítio, que é reconhecido pelo Órgão.

A prefeitura orienta a população que entregue as ossadas encontradas no Departamento de Cultura da SMEC, se comprometendo a enviar as mesmas para os pesquisadores em arqueologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Muito mais pode e deve ser feito.

Enquanto isso, as ondas vão desvendando a história negra, escondida sob a areia e os arrecifes, ao sabor da maré. “In loco” o vento e a maresia são inimigos implacáveis. As ossadas se dissolvem na praia. Por outro lado é emocionante tocar em algo tão caro a todos nós.

A memória negra merece ser contada e preservada.