CRÔNICA

Por Marco Dacosta

 

Era ainda outono, quase no finalzinho, quando Rodolfo viu os primeiros flocos levitando na altura de seus olhos. Estava em sua varanda, era apenas uma noite gelada em Neversink, um ponto perdido no Catskill – uma cadeia de montanhas no estado de Nova Iorque. Sua primeira reação foi de uma alegria intensa, sem explicação. Para alguém criado nos trópicos, o cair da neve é mágico, quase um transporte para a sessão da tarde quando diante de uma televisão, nem imaginava que seria possível um dia ver aquela cena, sentir os flocos caindo sob seu corpo e olhar para os céus na esperança de entender como seria possível isso.

Como um jovem branco europeu vislumbrando a pororoca, os grilos e vagalumes brilhando nas florestas do Brasil, Rodolfo descobriu naquela noite que o hemisfério norte não só possui estrelas diferentes mas que o céu os presenteia com suas lágrimas em forma de cristal. É um presente da natureza, quase como uma desculpa divina pelos furacões e terremotos. Estão todos perdoados por suas lavas e rachaduras na terra.

Minha primeira vez não foi diferente. De um sótão em New Jersey, nos anos 90, chorei ao ver os primeiros flocos. Na época, sem celulares com câmeras, nem internet para compartilhar minha surpresa e alegria. Me lembro também de ter telefonado a amigos e avisado que finalmente havia presenciado o fenômeno. Aquele ano demorou tanto para nevar que cheguei a acreditar nas velhas histórias da minha avó que dizia que os americanos haviam inventado a viagem à lua e que tudo que vimos havia sido gravado em um estúdio em Hollywood. E se a neve – pensei – também fosse um artifício cinematográfico? Seriam aqueles filmes de papai noel com as casinhas brancas uma invenção para comercializar o Natal? Naquela noite, na pequena cidade de Kearny, destruí a teoria da minha avó e presenciei o milagre que vinha dos céus.

Voltemos a Neversink, nesse final de outubro.

Rodolfo misturou em seu rosto lágrimas com os flocos de neve. Pensou em ligar para amigos e familiares, mas seria como relatar a final de uma copa do mundo apenas com a voz. Como explicar os movimentos das pernas de Pelé ou Maradona para quem não estava lá perto do gramado? Há certos fenômenos como a neve caindo e tornados que nem mesmo as câmeras podem captar pela intensidade, grandeza e beleza. Impossível relatar para alguém nascido e criado nos trópicos e na calma América do Sul, a forma lúdica e violenta que as terras do norte presenciam. São planetas diferentes.

Mas como seria isso possível? Rodolfo buscou explicações científicas porque as divinas já estavam em seu coração:

Os movimentos no interior das nuvens são fascinantes e belos, mas não podemos vê-los sem câmeras especiais. A olho nu, só mesmo quando os cristais de gelo e o vapor de água congelado se juntam, gerando um dos fenômenos mais lindos da natureza. As partículas caem em direção ao solo, algumas delas flutuando. Nem todas chegarão intactas, milhões poderão evaporar no ar.

Graças a Deus – disse Rodolfo – muitas gotas cumpriram sua missão divina, presenteando o solo de Neversink com aquela leve camada branca. Ele foi avisado por sua chefe “isso não é nada – espere até dezembro” como um alerta que poderá alterar do fascínio pelo tédio de ter por meses tudo ao seu redor intensamente branco. O mundo monocromático do inverno nas terras do norte causa muitas vezes uma tristeza profunda – O “Winter Blues” dos países nórdicos – somado ao norte-americano “Cabin Fever” – O sentimento de ficar preso em casa durante muito tempo, são desconhecidos para quem foi criado nas florestas de chuva do sul.

Rodolfo faz pouco caso dessa possibilidade. Ele acredita que sua alegria é tão imensa e intensa que o frio jamais poderá paralisá-lo. Ele espera que assim como o filósofo francês Albert Camus, descubra que dentro dele , em meio a um intenso inverno, há um verão invencível.