CRÔNICA

Por Marco Dacosta

 

Jan desmaiou na escadaria do hotel. Era uma manhã quente durante o verão da pandemia, quando não havia mais hóspedes e nem empregados. Ficou ali por alguns minutos, cansada, respirando lentamente. Sentiu o cheiro do couro fino, quase pelica, que revestia as madeiras da escada e deslizou sua mão pelo corpo, encolhendo-se como uma criança. Não se machucou, aproveitou aquele curto momento para descansar o corpo, ajeitando-se entre um degrau e outro, como uma criança no útero da mãe.

Naquele momento, Jan Johnson, que há quarenta anos cuida daquelas paredes e camas como se fosse o melhor lugar do mundo, pela primeira vez sentiu as vibrações da madeira, imaginando pessoas subindo e descendo, como nos tempos de plena efervescência. Era como deveria ter sido no inicio do século passado – pensou ela – quando o Hotel Panamá era uma simples hospedaria para homens japoneses solteiros que chegavam no porto de Seattle em busca de oportunidades, das fantásticas histórias de corridas de ouro, das obras do Canal do panamá, que recrutar milhares naqueles temos. Muitos também vinham para fazerem o caminho gelado até o Alaska. O lugar, hoje Japantown, era e segue um importante portal do pacífico na costa oeste.

Jan nunca presenciou essas cenas da criação do hotel. Nem havia nascido, na verdade. A estudante de artes ficou fascinada, quando aos vinte e poucos de idade, nos anos 80, viu as fotos em preto e branco, recordes de jornais e reportagens sobre o lugar. Ficou apaixonada pela arquitetura, história e os fatos que levaram o prédio a hoje estar incluído no rol do patrimônio histórico dos Estados Unidos. Ela se encantou pelas ilustrações e plantas de Sabro Ozasa, o arquiteto que desenhou o prédio, o primeiro da cidade projetado por um americano de origem japonesa. Jan conheceu e se apaixonou também pela lenda que habita o lugar, abandonado às pressas, nas vésperas da segunda guerra.

Quando houve o ataque japonês a Pearl Harbour, o governo americano decretou a cruel ordem 9066, que excluiu todos japoneses do convívio nas cidades, levando milhares de imigrantes e também seus filhos nascidos aqui para campos de prisioneiros. Na época negócios japoneses, alemães e italianos sofriam represálias devido ao conflito. O Hotel Panamá naquele mesmo ano teve seu porão abarrotado de malas e pertences das famílias locais que tiveram que abandonar tudo para ficarem reclusas por anos. A maioria dos itens jamais foi resgatado e centenas nunca voltaram ao prédio para resgatarem seus pertences. Nas décadas seguintes o Hotel virou um museu de tristeza e lembranças, com malas e roupas esquecidas.

Deslumbrada com a história, a jovem recém formada em artes plásticas, conseguiu um empréstimo e com a ajuda e simpatia do dono japonês, arrematou o hotel – na verdade foi escolhida pela família proprietária porque era entre as candidatas a compra, a que mais se mostrava apaixonada pela preservação dos porões e das lembranças das famílias que nunca mais voltaram. Havia o risco de demolição e de que aquelas malas se perdessem, diluídas pelo progresso.

A lista de relíquias era imensa. O Hotel Panamá tinha uma casa de banho no seu porão, tradição chamada de Sento, com agua quente e fumaça. Jan preservou tudo, das placas na parede até o lugar onde estão as malas, roupas, sapatos. Há quarenta anos ela tem as chaves que abrem as portas do passado. Ela se tornou uma Hogo-sha – a guardiã dos tesouros de uma Nihonmachi – como são denominadas as áreas hoje escolhidas pelos japoneses em todo mundo para viver e prosperar, fora do Japão.

Jan se levantou minutos após a queda – seu sonho da viagem ao passado durou minutos. Não há mais hóspedes, o mundo parou e ela naqueles meses de verão sentia-se transportada para aqueles anos de guerra e medo. Embora hoje, uma senhora de idade, possui uma incrível energia e cuida sozinha das maiorias das tarefas do hotel. Sem filhos, tem os quartos como se cada um fosse sua criança, com olhar atento a cada detalhe. Adora receber visitantes curiosos com a história – segue abrindo portas e exibindo seus móveis e quadros, a maioria original e há quase 100 anos por lá. A noite, o Panamá mostra-se sem os confortos da modernidade, com a simplicidade de um hotel de trabalhadores dos anos 20 ou 30. No quarto, uma cama, um armário e uma pia. Um abajur e pinturas japonesas completam a decoração. Não abra a janela – adverte a todos, “se preferir, abra a porta e deixe o vento dos corredores arejar o quarto – recomenda o panfleto deixado na mesa. Há um banheiro coletivo em cada andar, alguns azulejos tortos, marcas de reformas mal feitas ao longo das décadas, carpete vinho escuro encardido em alguns lugares, remedados em outros. As paredes que guardam segredos e sussurros, mas nada assustador – “Eu sou o fantasma do hotel” diz Jan sorrindo sempre que perguntada sobre a fama de lugar mal assombrado. Ela se recupera de vários tombos da vida, das escadarias, sobe e desce ainda imaginando que tem como missão de vida preservar aqueles objetos e o hotel que lhe foi confiado – a Hogo-sha, guardiã de coisas de pessoas comuns. Ela não guarda joias de rainhas e nem nobres. Jan preserva as memórias de operários, escavadores, mineiros, instaladores de cabos, navegantes e marinheiros. Guarda à sete chaves as recordações de centenas de vidas modestas e anônimas, ceifadas na guerra e pelo ódio racial que se alastrou e ainda existe contra asiáticos. O tempo passou, mas o preconceito não.

Jan não é asiática – tem cabelos castanhos e parece uma elegante francesa. Tem no entanto, andar forte e gestos de seus antepassados, que vieram dos ventos do norte da Escandinávia. Seu pai era um imigrante indocumentado e por isso talvez ela entenda tão bem a dor das pessoas mais simples. Ela se considera também um deles que lá deixaram as malas. Acorda cedo, limpa janelas, atende telefones. Jan é uma trabalhadora, embora seja dona de hotel e celebridade na vizinhança. Estudantes de turismo, filhos e netos de japoneses aparecem ocasionalmente para ajuda-la. O Hotel é a memória de toda comunidade.

No momento que meu avião decolou de Seattle, depois de dias ao lado de Jan, soube que a cidade elegia para prefeito Bruce Harrell, neto de um dos japoneses enviados aos campos de prisioneiros. A cidade terá como autoridade máxima nos próximos anos, um descendente de um dos que ficaram naquele hotel, com medo do futuro. Todas aquelas pessoas nas fotografias amareladas e rachadas pelo tempo, de certa forma, ganharam um novo tempo e sobrevida. Jan sonha em que o hotel seja um museu, um mergulho na história. Somente conhecendo o passado – dizem – podemos evitar os erros no futuro.

A cidade aos poucos vai se se reconciliar com a história, dispersando a névoa que encobriu por tanto tempo as memórias daquele tempo difícil. Jan Johnson não acredita que sua missão está perto do fim: ela segue descendo e subindo as escadas, limpando, sonhando que registra hóspedes. A menina que nasceu antes da guerra tornar o prédio misterioso e abandonado – vive agora uma pandemia que afastou novamente todos daqueles quartos. Ela olha pelas janelas e sente a brisa que vem do mar, ali perto.

Ventos melhores virão.