OPINIÃO

Por Paolo D’Aprile

 

Mas um dia, nós nem pode se alembrá
Veio os homis com as ferramentas
O dono mandô derrubá

Tipo assim: os caras que deveriam zelar, fazem exatamente o contrário, e o resto que se exploda.

Tipo assim: poderia eu escrever os nomes dos integrantes da corja toda, depois enfrentaria um processo, perderia e deveria pagar indenizações milionárias por calúnia, difamação, danos morais além dos gastos com advogados, claro.

Tipo assim: imaginem a cidade mais monstruosa das Américas, a maior de todas, fundada por um grupelho de padrecos jesuítas com a ajuda do latifúndio incipiente de quinhentos anos atrás; uma cidade nascida sobre o sangue do etnocídio e o epistemicídio indígena e que estagnou por séculos sob o braço armado de bandeirantes e traficantes de pessoas.

Tipo assim: imaginem essa mesma cidade que de repente começa a crescer como nenhuma outra no mundo, abrigando imigrantes do país inteiro que enxergam nela o novo eldorado, mas nela encontram morros e barracos, cortiços e favelas; imaginem europeus aos milhares chegando com uma mão na frente outra atrás para trabalhar em fábricas insalubres, construindo impérios econômicos aos quais nunca terão acesso.

Tipo assim: apesar de tudo, de imensas dificuldades, a cidade molda uma identidade peculiar e, em algum momento, em alguns pontos específicos, consegue criar um tipo de convívio social único, em que as gentes de todo lugar inventam seu cotidiano pela vontade de preservar identidades e tradições.

Tipo assim: imaginem um bairro construído entre vielas, ladeiras, casarões e sobradinhos, teatros e cantinas, igrejas antigas, festas populares calabresas e espetaculares ensaios de escolas de samba.

Tipo assim: imaginem um bairro encravado no centro dessa cidade monstruosa, entre avenidas radiais, viadutos, pontilhões, com escadarias e jardins, com artesãos trabalhando na calçada, nascentes e bicas, grupinhos de senhoras de bobies e roupão gastando a lábia ferina na porta de casa, crianças na pracinha e o busto de um palhaço triste, cantor e poeta desse bairro de italianos e negros: nada a ver, tudo a ver.

Tipo assim: aqueles que deveriam zelar por tudo isso, aqueles que deveriam garantir a incolumidade desse ambiente único, dessa história sem fim, dessa gente toda, aqueles que deveriam cuidar de tudo, na realidade estão trabalhando para aniquilar, para que não reste pedra sobre pedra. Já permitiram a demolição de um imenso lote. Adeus casinhas, sobrados, mulheres de roupão, padaria de esquina, adeus. No lugar querem construir um prédio daqueles, vinte, trinta andares.

Tipo assim: essas pessoas integram o órgão municipal criado para brecar a especulação imobiliária e preservar o patrimônio histórico, artístico e cultural da cidade.

Tipo assim: decidiram que tudo bem, pode demolir à vontade e construir o prédio.

Tipo assim: o discurso é o de sempre: a cidade não pode parar, o progresso não pode parar, o novo empreendimento vai criar empregos e trazer prosperidade.

Tipo assim: fodam-se vocês, seu bairro, sua feirinha, sua igreja, sua escola de samba, seu busto do palhaço poeta e cantor, sua bica, sua nascente, suas ladeiras, suas escadarias, suas cantinas, suas tradições, sua identidade. Explodam-se todos.

Tipo assim: dito órgão municipal deveria ser formado por notáveis com experiência no ramo, professores, urbanistas, arquitetos, historiadores, deveria estar conectado com a necessidade das comunidades sob ataque, deveria ser o último baluarte contra a barbárie do capital especulativo. Enquanto alguns membros são nomeados por entidades da sociedade civil por notório saber, o poder político que rege a prefeitura indica seus homens para ocupar a presidência e as representações oficiais: uma parte da máquina pública imbricada com os financiamentos privados e os interesses imobiliários.

Tipo assim: quem deveria preservar coladinho com quem já destruiu o lote inteiro. Um criou a possibilidade e o outro foi com tudo.

E agora? Já pensou se escrevesse e publicasse seus nomes? Já pensou a treta em que vou me meter? Tipo assim: vai dar merda. Já deu.