CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou…

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí!”

Cântico negro

(José Régio)

 

Chegamos ao terminal rodoviário de Montevidéu ainda pela manhã, começo do verão. Conectado ao shopping “Tres Cruces”, o terminal é pequeno mas muito eficiente, com todos os serviços que um viajante precisa. No meu caso, amante da informação, logo percebi uma livraria. Não há melhor maneira de se chegar a um país que desfilhar os olhos por suas bancas de jornais e revistas, onde ficam como vitrine as tragédias, alegrias e sua política. É a notícia contada por eles mesmos, que incendeia nossa imaginação e nos revela suas contradições.

Foi lá, na pequena livraria da rodoviária. entre livros, com cheiro de incenso e erva mate, que esperei um amigo para me receber, hospedar e apresentar a capital uruguaia. Eduardo, que já havia trabalhado comigo no Rio, havia regressado a casa no ano anterior, depois de uma longa temporada estudando e trabalhando no Brasil. Na época da minha visita, trabalhava para um empresa de seguros e como a maioria dos uruguaios, gostava de conversas sobre política e liberdade. Desde que nos conhecemos em uma manifestação política na Cinelândia, no Rio, me surpreendeu com seu conhecimento sobre a política do país vizinho. Acho que por viverem entre dois gigantes – Brasil e Argentina – os uruguaios desenvolveram essa capacidade de mergulharem profundamente na intimidade de ambos, como as vezes fazemos quando moramos em apartamentos de paredes finas, onde somos quase obrigados a escutar as brigas e ruídos de amor de quem mora ao lado.

Eduardo divide com duas amigas uma ampla casa em um bairro próximo ao centro. A morada com uma grande claraboia central, se abre mecanicamente e sempre é apresentado como a surpresa do lugar para as visitas. A casa construída nos anos 30 e guarda um enorme charme, com seus quartos compartindo um espaço central comum, um pátio para ler, conversar e se encontrar. Circulamos entre plantas e livros, ouvindo histórias e gargalhadas. A primeira coisa que se percebe é a calma e o ritmo suave da vida na cidade. Para nada há pressa. Não é um silencio de monotonia, mas ao contrário de algo que se acumula para explodir depois, seja na dança no fim de semana, ou na alegria dos bares de esquina. É provinciano sem ser atrasado, é moderno sem ser afobado.

Não muito diferente de Porto Alegre, mas com uma calma de dar inveja as cidades brasileiras, Montevidéu repousa entre um rio de águas barrentas e os pampas, cercado de imensidão. Os olhares parecem seguir esse caminho, numa orla que lembra o malecón de Havana, sem o mar azul.

No caminho para a casa de Eduardo, caminhando pelas calçadas bem cuidadas, vi casas coloridas, cachorros soltos e esquinas que me lembram as velhas ruas de San Juan ou da Cidade do Panamá. Já a noite, caminhando pela “Ciudad Vieja” parei em uma janela aberta para ver o batuque do Candombe, um ritmo proveniente da África, e tem sido parte importante da cultura uruguaia por mais de 200 anos. As roupas brancas, o cheiro de incenso e alegria, tudo se assemelha aos nossos toques de terreiro do Brasil, as casas de dança de Cuba ou de qualquer outra cidade que vive ainda essa forte influência, da rota da escravidão e do sofrimento de milhões de almas.

Com um sorriso aberto e cercada de amigos uma negra alta e encorpada canta em sua sala de estar, com seus vizinhos sentados no sofá. A janela baixa da casa antiga me deixou ver toda aquela alegria. Parece que não há medo do outro e nem do desconhecido. A janela descortina um outro mundo, ao som dos atabaques. Na parede pinturas com tigres e um manto dourado sobre o sofá.

Montevidéu parece que ainda está nos anos 80″ – alerta meu amigo Uruguaio, como quem quer me preparar para a despreocupação consumista da cidade. Há pouco interesse da capital uruguaia pela modernidade das cidades vizinhas latino americanas, acostumadas aos novos prédios de vidro esverdeado, alumínio das janelas e painéis de led. Nada parecido com a aristocrática Buenos Aires, nem tão obvia e sensual como o Rio de Janeiro, perdido em meio a pobreza e fantasia, tropical e inseguro. Montevidéu repousa sem pressa, sem desespero pelo futuro metálico e acrílico. Uma hora se olha e parece uma praça de Belo Horizonte nos anos 60, outra uma esquina de Santiago de Cuba, com suas casas antigas e o som dos tambores. Pelourinhos que falam castelhano e que cheiram a patuchouli. A velha senhora pega o ônibus com calma, o estudante senta-se a praça sem animosidade. A universidade cercada de faixas e manifestações de uma esquerda viva e que discute política. Sim, política em toda parte.

Chegamos às vésperas de uma eleição já consolidada com a vitória da corrente socialista que governa o país há oito anos. A questão da legalização do uso da maconha não é novidade e nem surpresa ” é uma coisa natural, há décadas se usa e se fuma nas ruas sem nenhum estranhamento” explica Eduardo. Para o casamento gay, a mesma explicação. ”Apenas foi legalizado o que já era aceito sem problemas. ”É cultural” explica. O país que possui uma das maiores índices de pessoas sem religião não enfrenta problemas e resistências para avançar com suas reformas liberalizantes.

Para nós tudo isso é natural”, diz uma outra amiga, tragando um baseado.

Espremido pelos gigantes Brasil e Argentina com suas elites conservadoras e sufocantes, a juventude uruguaia não sabe o que é guerra de tráfico ou violência provocada pela disputa de quadrilhas. A legalização do aborto também diminuiu a morte de mulheres pobres e deu fim com a indústria das clínicas clandestinas. O país enfrenta com coragem o que os vizinhos empurram com a barriga. Cansado de ver a hipocrisia das elites dos irmãos ricos e poderosos, uruguaios vivem na simplicidade – da mesma forma que Portugal olha para a Alemanha. Se ganha menos, se vive com menos, se mente menos, se vive mais intensamente e sendo quem são, desprezando as máscaras.

O ex-presidente Mujica simboliza com maestria esse espírito: falou recentemente sobre a simplicidade que vive e que em certo ponto simboliza a vida uruguaia que percebi nas ruas – Pobres não são os que têm pouco. São os que querem muito! Eu não vivo na pobreza, vivo com austeridade, com a renúncia. Preciso de pouco pra viver – reafirmou.

E parece que os uruguaios, acostumados ao pequeno país, a não ter doutrinação nas escolas como ” país do futuro” e nem “gigante pela própria natureza” conseguem viver dignamente sem muita diferença entre pobres e ricos. O Uruguai está classificado entre os países da América Latina como um dos melhores países em qualidade de vida. A taxa de analfabetismo é baixa, bem como o índice de pobreza no país. Além disso, possui uma classe média muito representativa. A desigualdade não é tão perceptível como na maioria dos países da América Latina.

É muito difícil descrever qualquer cidade porque todo relato é também parte do ” espírito da viagem”, ou seja é pela lente do navegante e seu humor que conhecemos um lugar. A capital Uruguaia guarda um tesouro que é seu povo e isso é fácil perceber. Quem sabe sem o peso de ser grande e potencia como seus vizinhos, quem sabe a liberdade e a longa tradição democrática. Pode ser a calmaria de suas ruas arborizadas e o cheiro do mate. Não saberemos nunca explicar. Visitar esse lugar não é um roteiro comum, para tirar fotos e ir embora. É um lugar para fazer, reencontrar amigos, sentar numa mesa de um bar, falar sobre a vida e recuperar a fé na humanidade.