CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia e Paolo D’Aprile

 

 

 

Mediterranean Sundance, o mar de todos nós

 

E o espanto me libera para voos em inimagináveis e desmedidos espaços. Não mais quatro paredes de um quartinho pós adolescente, mas o mundo que você mostra pra mim contando a história de um pedacinho dele, entre Istambul e Marselha, entre Beirute e Barcelona. No meu colo as curavas do violão: a matemática inventada pelos frios e calculistas calendários para aprisionar o tempo em categorias chamadas “passado presente e futuro”, vai se derretendo, desaparecendo no tique taque do metrônomo enlouquecido. O pulso, batida acelerada, busca a sucessão de notas no embaralhar de dedos. Meus dedos estéreis, feito molusco na areia. Seus dedos… .

Lá, no reino do desconhecido, do mistério, onde a real forma humana, funde-se com o todo que a atravessa, estou eu, fone de ouvido só pra mim, navegando no Mare Nostrum da imensidão contida entre a história de povos e civilizações, que hoje, renegando si mesmas, cobrem aquele mesmo mar de cadáveres migrantes, vindos das profundezas do mundo em cujos olhos vê-se o reflexo do inferno vivido, do sonho humilhado.

Fone de ouvido, sim, lá estou eu, quarto de porta fechada, violão, olhos cerrado máxima concentração. E de repente as redes da ficção, as amarras da falsidade, tão afiadas de cortar as lágrimas, caem por terra, desatadas, desprovidas de função. É assim, no volume a dar com pau do fone fundido em meu ouvido, que a música triunfa, que o Mar Mediterrâneo, de Gibraltar ao Bósforo, derruba seus limites, e os seres de injuria que tomaram conta da nossa mesquinhez desaparecem para sempre. Do poço insondável do furor, como anjo de justiça, brota a melodia, fumaça inebriante a separar a memória das coisas dos objetos que nos rodeiam. Luzes profundas iluminam de azul a consciência coletiva, onde os povos encontram sua origem comum, caminhado junto, desde a origem até o fim dos séculos, ligados uns aos outros pelo pouco que cada um de nós é, pelo ínfimo valor que cada um de nós, sozinho, tem e representa: fortalecendo laços, multiplicando alianças, afirmando identidades, destruído para sempre o próprio tempo da destruição.

Al Di Meola, é aquele espanto de desmedidos espaços. Parceiro dos melhores, desde sempre, navega e voa à roda do meu quarto e das minhas mãos endurecidas; eu, transformado em ser vegetal, sonâmbulo de mim, no gesto pétreo das dores artríticas de velhices precocemente começadas, graças a você, Al, volto a ser o guitar hero que sempre fui, o cantor e bailarino de flamenco de cueca e chinelo frente ao espelho do meu armário; volto a ser jazzista refinado, almirante da nau capitânia do oceano-mundo da música. Transformo aquela solenidade sepulcral, aquele ritual vasto e silencioso da formalidade e da distância, em noite de festa berbere, turca, napolitana, espanhola, grega, beduína, onde a desolação da guerra, da divisão, da morte, será banida para sempre, e o Mar Mediterrâneo não será mais Nostrum mas se tornará finalmente o mar de cada um, o mar para todos, o MAR DE TODOS NÓS.

Paolo D’Aprile

 

 

AL DI MEOLA E A ONIPRESENÇA DO SOM

 

Quatro vezes eleito o melhor guitarrista do mundo pela Guitar Player Magazine, parceiro do mítico Paco de Lucia (“mítico” sem nenhum tipo de alusão ao caipora autoritário no circo armado no Brasil atual – Paco é olímpico, ponto!), parceiro de Jean-Luc Ponty e de Stanley Clarke: eis as características gerais desse grande ícone da guitarra e deus do Jazz, do Jazz Rock, por assim dizer. Vamos ao retrato desse grande.

Quando os velhos anseios da liberdade jazzística estavam se esgotando – grande parte por causa desta ânsia mesmo, – os meios eletrônicos imperando e faltando anos ainda para a ressurreição dos acústicos pela MTV, eis que surge Land of the Midnight Sun em 1976. Que comunicação espontânea entre o Rock Progressivo com o velho Jazz.

Lembro em digressão do filme High Society, quando ainda em 1956 e o Bing Crosby ao lado do lendário Satchmo entoam uma ode nostálgica como se o Jazz, já naquela época, estivesse ultrapassado por um Rock ainda engatinhando.

Imagina. Se Cole Porter já encarava o Jazz em plenos anos 50 como um estilo em fase de ser ultrapassado e encarava-o com uma forçosa dose de deferência, o que dizer dos anos 70 com Beatles na fase Álbum Branco (1968, mas com janelas abertas para o futuro)?

De Now You Has Jazz de Porter para The Wizard de Di Meola temos vinte anos e um mundo em ebulição: a humanidade tentou ser jovem até 1968 – mais especificamente maio e com coordenadas geográficas: Paris, – contudo foi barrada por uma repressão nunca vista anteriormente, ficando a semente e as calças jeans. Claro que a mística dos anos 60 iludem um pouco e esvanecem conquistas libertárias anteriores, como o Bebop ou o Hard Bop ou o Grupo de Bloomsbury ou Cradle Will Rock (peça de Marc Blitzstein onde se retrata, de forma escancarada, as mazelas que os donos do poder nos impõe – e Orson Welles ali no meio em um de seus grandes momentos de lucidez mindfulness); mas, como ia dizendo, foi nos anos 60 que o sonho de fato “adormeceu”.

O Jazz como força libertária estética soube se ambientar, soube se fazer camaleão para manter sua pujança criadora e não estagnar em uma estrutura dogmática, daí a importância de Al Di Meola e de seu companheiro de Return to Forever, Chick Corea. São jazzmen que mantiveram a chama acesa em meio à calmaria reacionária de um Nixon, Reagan, Bush Senior; de um AI-5; de um Papa Doc, Pinochet, Trujillo e tantos outros hediondos ditadores torturadores soft e hard, limpos ou sujos, que aterrorizaram o planeta nos anos 70 e 80 – e que, por incrível que pareça, nesse momento, ainda alegram alguns desavisados acéfalos.

Return to Forever é um clássico que serviu de desfibrilação cardíaca para o Jazz nos tempos que seguiram à sobrevida que a Bossa Nova tinha dado, porque essa música é feita de inovação, vejam Miles Davis por exemplo sempre foi um antiMIles um neoMiles, ou Dexter Gordon ou o Chet Baker, cada um com suas especificidades soube ser novo sempre. Mas como o alimento da grande arte é a inovação completa, não bastam as reinvenções dos grandes nomes, é preciso o surgimento de novas visões, visões únicas de artistas únicos que carregam dentro de si a tocha da força criativa retratando seus universos individuais. Aí surge a imprescindibilidade do grande Al Di Meola.

O Lp Land Of The Midnight Sun de 1976 como já salientado acima é uma obra-prima, nele está contido um diálogo profícuo entre o Rock Progressivo e o Jazz de uma forma tão natural que já foi lançado pelo catálogo Jazz Masterpieces Contemporary. Na faixa Wizard, o que se ouve é jazz? Para mim não resta dúvida alguma, visto a desenvoltura da guitarra, é uma jam session eletrificada, o mundo muda e Al Di Meola junto com Anthony Jackson, Mingo Lewis e Steve Gadd estão praticando envoltos em amplificações magnéticas o mesmo que Fats walller e, mais uma vez citado aqui, Louis Armstrong faziam nos anos 1938/1942.

A Arte é uma como o Quanta, sempre interagindo e mantendo energia para luz e calor. Por isso, o Jazz está no ar eletrificado ou não por que pulsa no movimento da criação.

As mudanças, as idades da vida do artista levam de Wizard a Le Monastère dans les Montagnes com belíssima execução no antológico Lp gravado por Di Meola com Paco de Lucia e John McLaughlin, obra-prima registrada pela gravadora francesa Decca em 1996. Ali está um ar de Andaluzia, uma leveza de bom-vivant (o que será isso mesmo? Ainda é permitido ou prendem a pessoa se praticar tal conduta? Dias sombrios os que vivemos…). Ouço com vagar ou, far niente, como dizem na língua mãe de meu amigo que divide esse espaço comigo, Paolo D’Aprile (o italiano mais brasileiro do mundo, porque observa e estuda nossas alegrias e aponta e denuncia nossas mazelas); me entrego mesmo à suavidade deslumbrante dessa música e, por que sou livre, esqueço do mundo a minha volta e das obrigações que sufocam a alta baixa classe média.

Alegria das conquistas do labor humano para todos e não apenas para encastelados, a sensação de ser um monge em meio ao Montecassino. Deixo por poesia a mescla infundir-se entre a sonoridade hispânica e a visão do monastério da Ordem Beneditina – lá, supostamente ou alegoricamente todos são iguais porque irmãos e, por isso, desfrutam igualitariamente das benesses da terra. Apesar de cético ainda gosto de me apegar à figuras ideais que surgem como arquétipos em nosso imaginário.

E assim, entre o Rock Progressivo e o Montecassino palmilho o caminho desse deus do Jazz, Al Di Meola. Sinto que sua figura perpassa essa gama infinita de lugares e pessoas e atrai ainda mais amantes da Arte do Bem Viver, como nos explica tão bem Juliana Gonçalves no artigo “BEM-VIVER E A RADICALIDADE DE SONHAR OUTROS MUNDOS” no site (https://usinadevalores.org.br/o-bem-viver-e-a-radicalidade-de-sonhar-outros-mundos/), ou seja: a organização social inspirada em uma cosmovisão das comunidades tradicionais, como os índios andinos e a árdua luta para reavivar o modo de viver anterior à chegada e degradação perpetradas pelos espanhóis e portugueses.

Por todas as considerações sinto Al Di Meola um mestre da grande Arte que junta gente e lugares e, por isso mesmo, estimula o retorno da beleza e da inteligência, da igualdade e do Amor. Al Di Meola é a onipresença do som!