OPINIÃO

 

 

Por Nurit Bensusan*

 

Passaram-se dias… Talvez mais até que uma semana, mas os fantasmas que me assombram não passam e nem passarão. Corro como cega entre as notícias da violência contra os Yanomami e os ataques contra os palestinos. Me debato nas tentativas de encontrar nuances, sombras, lugares onde pode se esconder alguma dúvida, alguma hesitação, mas a verdade é que não há. Tudo é transparente, cristalino…

Leio que em 1991, o então senador Severo Gomes do PMBD esteve na Terra Yanomami, antes de sua demarcação, e fez o seguinte relato: “Paapiú parece um cenário da Guerra do Vietnã. De cinco em cinco minutos um avião pousa e decola. Os helicópteros rondam sobre o pano de fundo da selva – trezentos gramas de ouro por hora de vôo. Dali sai uma riqueza de difícil mensuração, e que segue pelos descaminhos da fronteira, deixando atrás a morte da natureza e dos homens. O posto da FUNAI está abandonado. Remédios e seringas descartáveis amontoados em desordem e misturados a latas de cerveja vazias. O livro de registro é folheado pelo vento. O rádio transmissor sumiu, ninguém sabe como. Os índios entregues aos garimpeiros. Enfim, uma mostra desse estercal em que se transformou o nosso país. Doença, desnutrição, mortalidade infantil. A malária, que não existia, agora flagela grande parte da população. A catapora deixa na cara dos que sobreviveram o sinal dos tempos de incúria. Junto à ponta da pista, de onde arremetem os aviões para a decolagem, a cinquenta metros dela, está a maloca dos Yanomami, antes cercado pelo voo dos pássaros e borboletas. O barulho é infernal. Impossível conversar dentro da maloca. Depois do pôr do sol os aviões silenciam. Aí – disse um velho índio – temos um barulho muito pior: são as crianças que choram a noite inteira. De fome.” Não havia nuance, nem sombra: genocídio.

Leio que em 1945, no momento da liberação dos prisioneiros dos campos de concentração e extermínio na Polônia, os soldados aliados não podiam acreditar no que estavam vendo, no estado dos seres humanos, em sua maioria judeus, que emergiam dos campos. Muitos a beira da morte, desumanizados, esqueléticos, sombras de pessoas. Não havia nuance, nem dúvida: genocídio.

Vejo as imagens dos ataques dos garimpeiros aos Yanomami hoje, agora, me descabelo. Um colonialismo sem fim, um estado ausente, que de propósito permite essa intrusão na ânsia de abocanhar a terra-floresta dos Yanomami com sua infinita voracidade. Desmatar, dessacralizar, arrancar as entranhas da terra, acelerar a queda do céu. Desde o contato com a nossa sociedade, os Yanomami foram continuamente massacrados. Dois exemplos pontuais não deixam dúvida. O primeiro, em 1975, está expresso nos resultados de uma pesquisa realizada pelos antropólogos Kenneth Taylor e Alcida Ramos para mostrar o impacto da construção da rodovia Perimetral Norte sobre os Yanomami, revelando que nos meses em que as obras aconteceram, em algumas regiões cortadas pela estrada, 75% da população morreu. O segundo é o massacre de Haximu, ocasião, em 1993, quando garimpeiros mataram 16 Yanomami, único crime no Brasil caracterizado como genocídio. Eram muitos os garimpeiros invasores, tantos quanto hoje, 30 anos depois. Quantas luas, quantos verões, quantos sonhos, quantas eleições passaram para voltarmos ao mesmo ponto?

Vejo as imagens dos ataques dos israelenses aos palestinos hoje, agora, me descabelo. Um colonialismo sem fim, um estado opressor, que desumaniza e subalterniza as populações locais. Mas, aqui o meu descabelar se transforma em um profundo desespero. São os descendentes daquelas sombras de pessoas, liberadas dos campos de extermínio, que lideram os bombardeios. São os filhos daqueles que sofreram, na pele, o extermínio de suas famílias e amigos que impingem tanto sofrimento aos palestinos, matando, ferindo e traumatizando centenas de pessoas a cada dia. São os herdeiros do holocausto que reproduzem o genocídio. Desde a implantação do estado de Israel, os palestinos vêm sendo massacrados. O que aconteceu em Deir Yassin, em abril de 1948, é um símbolo desse processo. Deir Yassin era uma aldeia palestina a oeste de Jerusalém que havia chegado a um acordo de não agressão com as forças armadas judaicas oficiais pré-estado de Israel. Apesar disso, sofreu um ataque por parte dessas forças e boa parte de sua população foi massacrada. O número exato de vítimas, algo entre 110 e 245 pessoas, nunca foi confirmado. Esse massacre disseminou o terror e acelerou a fuga da população local. Depois desse, houve vários outros ataques, até culminar nos bombardeios de prédios civis no meio de áreas urbanas como vemos hoje.

O constante massacre dos Yanomami e dos outros povos indígenas no Brasil desespera, mas não surpreende pois essa é a lógica genocida da colonização europeia desde que os primeiros brancos pisaram nesse continente. O massacre dos palestinos, porém, continua me surpreendendo, todo dia. Uma arrogância da minha parte, talvez. Achar que violência é escola, que judeus teriam aprendido algo com o antissemitismo a que foram submetidos por séculos, que recusariam o papel de agentes, ainda que de segunda classe, do colonialismo branco. Mas, minha surpresa é o que surpreende, os judeus nunca se aliaram aos condenados da terra, nunca hesitaram em se considerar brancos e até mesmo europeus, por que, então, me insisto me surpreender?

É assim que percebo quão instilado está em mim mesma a ideia de que os judeus são diferentes, assentada anos a fio pela vida familiar e pela cultura judaica. Se o massacre dos povos indígenas não me surpreende por ser previsível, por eu nada esperar dos agentes do colonialismo aqui no Brasil, eu tenho que reconhecer que o sionismo fez seus estragos nos corações e mentes de todos os judeus, usando sua história de perseguições e dor para justificar uma violência indefensável. Os corações envenenados batem no peito da grande maioria dos judeus, uma dificuldade em perceber que as atitudes israelenses frente aos palestinos são apenas mais do mesmo, um estado bélico, opressor e colonial massacrando as populações locais, ignorando seus direitos e suas vidas. Não há nem sombra, nem nuances…

 

Nurit Bensusan

Sou um ex-humana, diante dos descalabros da nossa espécie desisti da humanidade, mas continuo bióloga. Enquanto isso, reflito sobre paisagens e culturas, formas de estar no mundo e as inspirações da natureza. Além disso, escrevo livros, faço jogos e aposto minha vida em usar a imaginação como alavanca para suspender o céu.