CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia

 

 

CARTA PARA THELONIOUS MONK

Caríssimo – escrevo assim por força de expressão, você sabe muito bem que nunca te amei e nunca te senti próximo, menos ainda, caríssimo. Pois bem, caríssimo Thelonious…, minha nossa, que raiva! Tuas notas entram em mim como agulhas, como unha a raspar na louça… E eu aqui, te chamando de “caríssimo” depois de todo o sofrimento que eu tive para entender teus intervalos irregulares, teus acordes tortos, tuas dissonâncias nunca resolvidas naqueles malditos finais pendurados na orla de um precipício. Eu, inseguro, morrendo de medo, indeciso entre escolhas impossíveis, entre um sustenido ou um bemol, com você no meu cangote, inimigo mortal do acorde natural, da tríade perfeita, da tônica, único refúgio para qualquer pianista, mesmo os melhores, que sempre procuram uma tônica, fugir do caos e voltar para casa. Tu, caríssimo, nunca quis saber de voltar para casa, tampouco de fugir do caos, um caos por você criado, procurado, enaltecido, fomentado. Sim, porque você indicou o maldito caminho da liberdade, junto com seus companheiros malucos do bebop, você já estava vendo e tocando tudo aquilo que teria acontecido dez, quinze, vinte anos depois. Thelonius! Nada de caríssimo, depois de tanto sofrimento para entender como funciona uma progressão harmônica, aí vem você e faz tudo o contrário, invertendo as notas, tocando torto (de novo) torto, do começo ao fim. Como se a partitura não tivesse valor algum, você foi o único capaz de ler entre uma nota e a outra, foi o único capaz de transformar as pausas e os intervalos na coisa mais importante: na expectativa daquilo que seria tocado logo em seguida. Você, o único capaz de criar tensão e dissonâncias pelo puro prazer de tocá-las, nunca falou de liberdade, você era a própria liberdade. E eu aqui, tentado entender, analisar covardemente, porque a liberdade assusta, a liberdade esmaga, a liberdade é o fardo mais pesado para quem quiser se apegar às normas. A liberdade tem que ser construída a cada acorde, a cada escala interrompida, no silêncio entre as notas, nas mudanças de andamento, nas quinas da dissonância nunca resolvida. Sim: a liberdade é uma dissonância nunca resolvida.

É, por isso, caríssimo Thelonious, por ter me mostrado a verdade, por ter me mostrado o caminho da liberdade que, caindo de joelhos, te odeio.

Paolo D’Aprile.

THELONIOUS GENIOUS

Inovador na geração dos inovadores, iconoclasta, Thelonious Sphere Monk Jr estava entre aqueles que transfiguraram o ritmo e a harmonia ainda num período que teve seu início antes da Segunda Guerra Mundial.

Jam Sessions em caves esfumaçadas, além da nicotina a ânsia de quebrar convenções engessadas. Liberdade de solos inimagináveis erguendo um estilo de harmonias feéricas, tão elegante quanto complexo, sofisticados e orgânicos como fractais de Mandelbrot.

Quebrar tradições. Imaginem a mudança de paradigma que é complexificar acordes como proposta estilística. Isso é como a Honestidade frente ao Infinito para tornar o Jazz capaz de expressar as contingências do humano pelas transcendências à sua volta, por meio de momentos de dissonâncias/linhas melódicas/atonalidades.

Monk parece ter subido aos Céus e reivindicado a batuta ao maestro.

Ora, se a vida nunca foi como o Danúbio Azul, por que não expô-la “como ela é”?

Tornou-se senhor de si a partir de 1947 após muita omissão pela crítica especializada (não estavam preparados). O presente de Monk foi tornar o piano técnico um instrumento de contato com o divino por meio das harmonias dinâmicas desse deus do Jazz (aliás, da Música).

Formado seu estelar quarteto, o Thelonious Monk Quartet, virou o condottiere desses ciganos errantes da música: Charlie Rose no sax tenor; Larry Gales no baixo e Bem Riley na bateria. E como são incisivas as expressões de Monk para os demais músicos. Às vezes de um esgar beirando ao prenúncio de uma luta corporal.

Mestre de Standards, ele é o pai de Straight No Chaser, Ruby my Dear e, claro, Round Midnight!

Nós nunca somos tão desamparadamente infelizes como quando perdemos um amor”, já dizia Fred sobre as agruras da formação e desenvolvimento primitivo da vida em seu estiolamento natural diante das intempéries do bioma e os reflexos na psique de cada um. Talvez essa insegurança seja um dos impulsos mais importantes para superação ao meio e motivo de mantermo-nos vivos.

Thelonious como um dos artífices do toque au transcendental encarna esse momento de ruptura contínua morte/vida.

Com efeito, renunciou ao passado ao se tornar herói do futuro. Eis o impulso da firmeza no amálgama das inseguranças, a atitude de enfrentamento às ondas bravias e, como um Poseidon, domá-las ao seu modo.

Tudo isso de sublimação em sua projeção na História da Música e mais: alguém admirável por sua entrega à sua Arte, consagrado ao sacerdócio como um monge (monk).

Em 1951 foi preso por porte de heroína, Monk era de outro planeta naturalmente, porém seu contato com Bud Powel causou esse episódio em sua vida. Bud, outro deus do Jazz, era usuário inveterado e quis levar a droga para uma confraternização na casa de Thelonious, ao perceber que a polícia o estava seguindo, despejou o conteúdo, que carregava em um envelope, atrás de um carro estacionado em frente à casa de Monk. Síntese: Monk respondeu como autor do fato delitivo e perdeu sua licença para tocar em clubes noturnos por um tempo (tinha passado por outra incursão em 1947).

Bud Powell quase se redimiu, porque tentou convencer Cootie Willians, um bandleader, a gravar Round Midnight. Isso que estará relatado aqui ainda é inédito em língua portuguesa: Powell era amigo de Monk; Round foi composta sobre uma letra escrita por Thelma Elizabeth (vizinha de Thelonious); a música se chamaria “I Need You So” de uma levada romântica. Ato contínuo, Monk registrou a música em 1943 e Cottie gravou-a, por intermédio de Bud, uma vez que Monk ainda não poderia gravar em estúdio.

Como era praxe nos meios de bandleaders, Cootie acrescentou um “interlúdio” de ocasião e se afirmou como coautor, para piorar ainda mais a situação apareceu uma segundo letrista ao arrepio de Monk.

De autor a terceiro coautor de Round Midnight, até hoje Thelonious Monk, ou melhor, agora seus herdeiros, recebem tão-somente um terço de royalties da opera magna.

Isso é um achado e quem nos conta é Robin D.G. Kelley no livro “Thelonious Monk: The Life and Times of an American Original” (edição de 2009, publicado pela Free Press e ganhador, dentre outras comendas, do PEN Open Book Award de 2010).

Possuía um caráter excêntrico bem peculiar, sendo aventado atualmente ele sofrer de distúrbio bipolar, segundo o autor do livro acima citado. Suas danças oníricas ao largo do piano enquanto Charlie Rose executa seus solos indefectíveis de saxofone tenor é algo animista, e como é gracioso tentar sentir aquele arrebatamento dele, principalmente, ao saber que os movimentos eram como parte do toque no piano. Suspendia a execução das mãos no teclado, levantava e dançava lentamente em círculos, sempre balbuciando vocalizes indecifráveis. São tantas os mistérios de Monk que ficamos estupefatos imaginando as origens destas manifestações.

O mais importante na figura de Monk, contudo, é ele ser um sujeito que pede miúdos de galinha no Roi de Sicile. Esse tipo sim é imbatível.