CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

O trem chegou lentamente na Barbès–Rochechouart. Era um domingo de primavera, quando pela manhã bate um vento frio e nos obriga a recolher as mãos e enfia-las profundamente nos bolsos do casaco.  Caminhando algumas quadras, vejo a basílica de Notre Dame, imponente, parecendo uma mesquita em terras árabes, dominando o colina. 

Parei para capturar as imagens ao meu redor. Sem câmeras, apenas fotografando pela mente, gravando sons e imagens ao meu redor. Pronto para novas experiências sensoriais. 

Em quase todos lugares que vou gosto de imaginar duas coisas: o que seria de mim se o mundo tivesse acabado e eu estivesse naquele determinado lugar e como eu apresentaria o lugar a um extraterrestre em visita ao planeta terra. Esses dois exercícios imaginários me obrigam a conhecer profundamente todos os lugares que vivo. Vai que um dia o mundo se acaba – ou um ser diferente de outra galáxia nos visite? Muitas vezes responder a essas fantasias me faz perceber que estou em um lugar chato e sem importância ou muitas vezes percebo que descobri um canto do planeta que honra o universo, lugares fantásticos pela natureza ou pela construção humana. Todos os lugares podem ser especiais, depende da forma com que olhamos. E sim, além de viajar, vamos interagindo e também mudando o olhar.  A cada viagem uma nova sensação e as vezes repetindo o mesmo trajeto, sinto tudo a minha volta diferente.  O tempo é um fator ao lado da paisagem.

Caminhando pelas cidades, observando seus monumentos e praças, olho com atenção para as construções acumuladas por gerações e gerações:  talento, sacrifício, suor e herança cultural. Cada lugar tem uma história e cada pessoa carrega em si uma parte dessa narrativa.  Somos parte dos lugares que nascemos e carregamos traços dele para onde nosso corpo for viver.  Não é por acaso que até hoje sonho com a casa da minha infância. O prédio já não existe mais, mas a memória paira sob aquele lugar, está vivo em minha memória e nas vidas de quem compartilhou aquela época comigo.  Meus amigos lembram de detalhes da nossa rua. Estamos todos presos na paisagem dos anos 80, naquela rua ampla de apenas um poste de luz, das calçadas onde brotavam capim nas rachaduras.  

E como mostraria o mundo a alguém desconhecido? Quando apresento o Brasil a estrangeiros explico que cada paisagem tem uma explicação e efeito sobre nós. Eu sou parte da história da cidade que cresci e tenho até cicatrizes que carrego daqueles tempos, medos, desejos. A cidade se mistura comigo – não consigo explicar o subúrbio do Rio sem sentir o gosto do picolé de kisuco, do cheiro do churrasco, do mormaço após a chuva das tardes de verão. 

Minha história pessoal está recheada de trechos das histórias e paisagens das cidades que vivi ou que passaram por mim. Gostos, cheiros, vegetação, cores, formas de vestir, sarcasmo, poesia e música.  Como sou fruto do terceiro mundo, incompleto e muitas vezes fragmentado, peregrinei por cidades do mundo velho como forma de entender as origens minhas e da cidade onde nasci.  Como não caminhar em Lisboa e não perceber os traços e as marcas que ficaram no Rio ?  E como observar o rosto de um bisavô, com as marcas de nossos pais, tios e primos, resumidos em um corpo envelhecido. 

O Rio é lindo mas é obra da natureza. A presença dos humanos e de meus antepassados, ao contrário, atuou para enfeiar a cidade, aterrando suas lagoas e mudando suas curvas.  Nova Lorque é hoje minha casa mas os Brownstones não fazem parte da minha memória afetiva. Manhattan é irregular e matemática, terra de empreendedores e de dinheiro – logo não poderia apresentar a ninguém como representação da humanidade. Somos muito mais que isso. 

Cheguei a conclusão de que se alguém quiser algum dia apresentar a nossa civilização a um extraterrestre, terá que mostrar Paris como prova da nossa capacidade criativa e referência a como podemos tornar o lugar que vivemos em uma galeria sem fim de nossa arte e de nossas paixões. Não há como apresentar o planeta a um outro ser extraterrestre sem falar de Paris. 

Se o mundo fosse destruído precisaríamos também de Paris como peça arqueológica para explicar como vivíamos – ou como deveríamos viver. Não só a paisagem mas a forma deliciosa de desfrutar de seus espaços, de trabalhar cada vez mais preocupados em acumular experiências e não somente dinheiro.

É o que de melhor deixaremos para as gerações futuras como exemplo de cidade e urbanidade, como exemplo de vilas que vivem em conjunto, todas amando rotundamente suas ruas, muros, praças e monumentos. Todas preocupadas com o respeito ao próximo, ao vizinho, com a beleza das sacadas das portas e janelas. Paris não é só uma festa, como descreveu os olhos americanos de Hemingway – é uma canção de amor a humanidade.