CONTO

 

 

Por C. Alfredo Soares

 

 

✓ “Deus é meu o juiz”
✓ Quando ele chegou, veio para se impor ao tempo. Atropelou meus prazos e, eu, disse: – e agora?
✓ O agora se fez presente, sendo meu presente inesperado. Como criança me segurei na mão dos meus pais, sem deixar que percebessem o pânico com aquela paternidade. A sorte foi ter uma base abençoada, que nunca negou fogo para as adversidades do caminho. Aos poucos fui me aproximando e tentando, ser um pouco, do que meu pai fora pra mim. Precisava de uma cartilha pra me acostumar e meu velho era o melhor pai do mundo. Minha mãe e irmãs… quanta solidariedade e firmeza!
Daniel cresceu subindo a serra desde  pequeno. Vinha quinzenalmente. Me lembro de uma vez que estávamos no meio da serra, dentro do ônibus. Ao lado um senhor dormia profundamente. Naquele tempo tinha um fiscal que pegava o ônibus no caminho e vinha conferindo a passagem. Antes da tal conferência, Daniel, então com uns quatro anos, conseguiu pegar da mão do senhor a passagem que deveria ser apresentada ao fiscal, sem que eu e ele percebêssemos.
✓ Ato contínuo, Daniel meteu o papel na boca e destruiu a passagem do vizinho de viagem de tal forma que era impossível recuperar. Por sorte acordei antes e vi que ele mastigava algo, quando consegui tirar de sua boca toda babada, percebi o que era. Rapidamente limpei o moleque com uma toalhinha de mão e fiquei sem saber o que fazer. O senhor roncava e o fiscal já vinha em nossa direção, pedindo os bilhetes pra ticar. Quando chegou na nossa fileira dei minha passagem. Como o homem não acordava, pra meu alívio, o fiscal resolveu não perturbá-lo. Quando já estávamos no alto da serra o homem acordou e deu falta do papel que estava na sua mão. Ali, já próximo do primeiro ponto da cidade, fiz cara de paisagem e preferi não falar nada. Daniel lanchou a passagem e achou gostoso o petisco. Outro momento marcante, foi quando fui chamado até o juiz para que fosse estipulado a pensão alimentícia. Confesso que foi um dos piores dias da minha vida. Eu não tinha onde cair morto e me via preso por conta disso. A pensão foi estipulada em 30% do meu salário mínimo. Era o mesmo que não dar nada. Sorte minha que a Ana foi compreensiva demais com a minha condição. Vivia atrasando e ela nunca me denunciou. Levei um bom tempo até pode manter uma rotina de pagamento.
✓ O tempo foi passando, Daniel crescendo e a gente se vendo.
✓ A mãe dele, sempre cuidadosa, começou então a relatar uma pequena mudança de comportamento no menino, então com 13 para 14 anos. Daniel passou a se desinteressar das aulas, sendo que tinha um bom desempenho escolar.
✓ A princípio achamos ser algo da idade, mas com o passar do tempo aquilo foi tomando conta da sua vida.
✓ A mudança de comportamento era visível e ele não mais interagia com os poucos amigos, se é que ele teve tempo pra desenvolver empatia e amizades. Seu ciclo sempre foi o familiar.
✓ Procuramos auxílio e ele veio a ser diagnosticado com esquizofrenia.
✓ Tão jovem e com tanta coisa pela frente, Daniel abriria mão de tudo. Não que quisesse, mas por imposição da doença.
✓ A luta para mudar a situação é diária, não cabe descanso. Munido da medicação correta, Daniel é levado pela vida. Seu principal obstáculo é a ansiedade, capaz de interferir até na sua alimentação. Quando está ativa, ela o faz vomitar o pouco que come, apesar de querer sempre comer mais.
✓ Os remédios são diários e pra sempre. Contemplativo, Daniel precisa ser o tempo todo estimulado a participar, senão é capaz de ficar o tempo todo em frente à televisão, parado sem perceber o dia passar. Sem as drogas moderadoras, ele confunde o que passa na telinha com realidade e entra em crise. Diz ver coisas, não dorme. Sua mente não para.
✓ Hoje ele está aqui, mas queria estar lá, estando lá, gostaria de estar aqui. Inteligente, sofre por não saber se expressar e ser aceito. Todo dia aprendo com ele a não me frustrar. Por outro lado, suas parcas conquistas são merecedoras de elogios encorajadores.
✓ No final de tudo, tento ser são o suficiente pra ensiná-lo a caminhar sozinho para além da minha própria existência.
✓ Com a idade de Cristo esse homem ainda está preso na sua infância, como se a portas da adolescência tivessem sido fechadas na sua cara pra sempre.
✓ A sua genitora é a melhor mãe que ele poderia ter. A ela minha honra e gratidão. Nunca me achei forte o suficiente pra tal jornada mas, acho eu, Deus olhou pra mim e disse, vai que estou ao seu lado. Sei que não caminho sozinho. Daniel em hebraico significa “Deus é meu juiz”.