Muita gente na favela. A única sala do Posto de Saúde, lotada desde cedo. Finalmente alguém organiza a fila, mas a tentativa de colocar ordem na alegre bagunça dura pouco: tomados por um anseio irreprimível, todo mundo quer ver de perto, tocar, participar e, principalmente, carimbar a mão com Pluto, Minnie, Batman, Homem-Aranha, dinossauros, monstros e as princesas disponíveis. 

Alguns anos antes, aquela sala não era nada além de um barraco miserável, nascido e criado em meio a ratos e esgoto a céu aberto. Três metros por quatro, sem porta, sem janela. Só as paredes e nós.

O pequeno quarto de papelão e madeira, graças ao trabalho capilar e incansável do pequeno grupo de mães voluntárias, ao longo dos anos havia se transformado em sala multiuso, e podia funcionar como sala de aula para cursos de alfabetização de adultos, sala de reuniões e festas, consultório médico, escritório, capela ecumênica, Posto de Saúde. E nada melhor do que iniciar as atividades com a campanha de vacinação infantil. Zé Gotinha, não podia faltar.

Eis as crianças. Dez, cem…, e tudo fluindo na maior tranquilidade. Uma a uma esperando a enfermeira gotejar suavemente na boca o remédio contra a poliomielite. Cada criança é recompensada com uma bela tatuagem de Plutão, Minnie, Batman, Homem-Aranha, dinossauros, princesas e heróis de sua escolha e, por último, um abraço de Zé Gotinha. No final da tarde, o que pensávamos vir a ser um incrível domingo de cão, se revelou como realmente foi: um domingo de cão incrível, inacreditável, fantástico. Quatrocentas crianças vacinadas. Quatrocentas crianças em questão de horas.

Vinte anos depois, o pequeno quarto de três por quatro ainda está lá. Mas não funciona mais, agora é uma garagem, um depósito, um quarto de despejo. 

Uma centena de metros mais adiante construíram uma escola para cinco mil crianças. Um enorme complexo de edifícios para escola em tempo integral com piscina, campo esportivo, ginásio, laboratórios e um belíssimo teatro. Uma estrutura totalmente pública. Era lá, no pátio da escola, que as campanhas promovidas pelos governos anteriores, conseguiam garantir aos habitantes do bairro, o acesso rápido e gratuito às vacinas contra a pólio, febre amarela, malária, influenza, etc. Não mais quatrocentas crianças em uma barraca, mas milhares de pessoas acolhidas em um ambiente onde era possível a administração sistemática e organizada, e ainda seria. 

As primeiras palavras de Lula à nação, após a anulação do julgamento e as consequentes condenações sofridas, são diretas e enfáticas: Onde está Zé Gotinha? pergunta o velho líder. Onde está Zé Gotinha?… A mascote, sempre presente em todos os eventos de saúde de massa, desde que Bolsonaro se tornou presidente, desapareceu, ninguém mais o viu. O governo, após a imensa repercussão das palavras de Lula, correu para relançar a imagem do boneco com um novo slogan: “agora nossa arma é a vacina“. Zé Gotinha, de amigo das crianças que era, nas mãos de Bolsonaro foi transformado em miliciano sombrio, um guerreiro, um carrasco de capa. Em suas mãos, uma metralhadora em forma de seringa, ou melhor, uma seringa em forma de metralhadora. Zé Gotinha transformado em um maníaco assassino. A indignação é enorme. A nova imagem é prontamente retirada de circulação, mas o dano está feito. 

Como se as ameaças que sofremos diariamente não bastassem, a mensagem de ódio e morte foi lançada até para nossos filhos e netos, para a população mais vulnerável a qualquer influência. 

Ninguém toque nas crianças, não se atrevam! Malditos.