Caros amigos brasileiros, 

Aqui estou eu de novo: é minha segunda carta aberta que tenho a pachorra de escrever com a ilusão de um dia ser lido e abrir o debate. A primeira, publicada corajosamente nessas páginas passou despercebida, foi lida por onze pessoas, uma vergonha. Talvez essa seja lida por um número ainda menor. A primeira foi escrita pouco antes do segundo turno das eleições municipais. Contrariando o senso comum e as vozes de vitória, afirmava eu a nossa acachapante derrota. 

Passaram-se três meses, e a derrota continua total. Não vou falar do desastre da saúde, dos mortos, do descalabro que é a falta de um plano nacional de vacinação. Sobre isso estou de acordo com vocês, compartilho seus sentimentos, suas preocupações. Aquilo que não consigo engolir é a facilidade com a qual aceitamos a descaraterização dos nossos valores.

Estou falando dos valores da esquerda, sobre os quais se baseiam as lutas dos trabalhadores em todos os continentes, em todas as épocas. A dicotomia entre o Capital e o Trabalho, a luta contra acumulação primitiva, a defesa intransigente da reforma agrária, a recuperação salarial, a estabilidade do emprego, a desapropriação, ou melhor, a expropriação dos meios de produção, a luta por uma moradia digna para todos, a moratória geral dos aluguéis, a nacionalização dos bancos e dos institutos de crédito, a economia voltada às reais necessidades das pessoas, o microcrédito, o nacionalização da água, o desmembramento de todo e qualquer latifúndio privado, o direito ao estudo. E paro por aqui porque a lista vai longe. 

Sim, caríssimos amigos brasileiros, perdemos o rumo do nosso caminho, nos desmembramos em pautas locais – cada uma fundamental para aquele pequeno grupo que a propõe -, pautas identitárias, ambientalistas… com as quais estou de acordo, mas que assim fragmentadas não representam perigo para a estrutura social vigente, ao contrário, são facilmente fagocitadas pelo mercado, absorvidas e por fim controladas por quem é diretamente responsável pela segregação e o sofrimento do nosso povo.

Reduzir a luta a carreatas e panelaços (não por acaso, as mesmas “armas” usadas pelos nossos adversários, os patos da Fiesp, os cidadãos de bem) é mais do que inútil, é humilhante. Ver a esquerda defender Baleia Rossi, como se isso fosse sinal de resistência ao bolsonarismo, é mais do que humilhante: é o fim. 

Na minha primeira carta, invocava eu uma estratégia de luta radical: afirmar aos órgãos internacionais, aos partidos progressistas, aos estudantes, aos movimentos, aos organismos sindicais, ao mundo, afirmar a ruptura da ordem democrática e o regime de exceção em que vivemos desde o impeachment fraudulento que tirou Dilma da presidência.

Ato seguido, não reconhecer a autoridade das esferas de poder que colaboraram para isso e sucessivamente retirar-se de toda atividade parlamentar, federal, estadual e municipal; construir alternativas de “contra poder” em todos os níveis. Convocar os trabalhadores ao boicote do emprego, seja através da “greve branca” – executando todas as funções seguindo à risca os protocolos – seja através de ações concretas de desmonte e interrupção da cadeia produtiva. E, por fim, convocar os movimentos internacionais, aquele tipo de colaboração que Gramsci chamava de Soccorso-Rosso: Ajuda-Vermelha.

Mas a esquerda, pelo menos aquela esquerda institucional – que tem força de organização e penetração popular – continua falando e trabalhando no respeito das regras da democracia representativa fundada no fisiologismo mais torpe da política brasileira; enquanto isso, as bases são dominadas pelas pautas identitárias que silenciaram e substituíram as exigências históricas dos povos: a resolução da dicotomia entre o capital e o trabalho, a luta contra a acumulação primitiva, a reforma agrária a expropriação dos meios de produção, etc… 

Caros amigos, voltemos a ser quem somos. Não deixemos que dominem o nosso futuro, porque quem controla o futuro, consegue reescrever o passado, e quem domina o passado controla o presente. Voltemos a ser quem fomos, voltemos a ser quem gostaríamos de ser, para poder nos tornar quem realmente somos. Agora. Porque não há mais tempo. Não há mais tempo!