CONTO

 

 

Por Alfredo Soares

 

 

Beirando o precipício, como se andasse solto numa corda bamba, aquele homem ia. Carregava consigo uma verdade líquida diluída no álcool que encharcava seu peito. Ali a coragem brotava e o medo era solenemente ignorado. Tropeçava, caia e levantava sacudindo a poeira. Uma síntese perfeita da sua vida nada nobre. Sóbrio era burro de carga carregando sacos de trigo no Porto. Mas era manso feito uma ovelha.

Estivadores eram uma espécie  de escravo,  mal remunerados, porém livres para gastar seu parco dinheiro nas bodegas escondidas nas vielas, estrategicamente colocadas no caminho de volta pro morro. A noite caia e as Luzes vermelhas acendiam. O ópio aliviava as dores da labuta. Envolto na fumaça dos cigarros e no cheiro doce dos perfumes baratos, se jogava na farra como senão houvesse amanhã. De tanto frenquentar os antros tinha crédito até com as putas do lugar. Todo noite era de orgia, que apagava o dia de opressão e migalhas.

Seu nome, nem ele sabia, havia sido reduzido a um apelido que o remeteria para o lugar de onde não poderia sair. Tudo ali era pequeno demais para uma alma tão cheia de energia. A bebida, o fumo e as pedras do caminho o conheciam bem. Filho de Xangô, tinha alma de Acanju  e Digina do santo impressa no braço. Não era fé que lhe faltava, era oportunidade.

Numa noite de quarta feira foi chamado no terreiro. Antes das luzes vermelhas do caminho acenderem, partiu morro acima. Sentiu que o chamado era coisa séria. Acocorado aos pés da macota soube que chegara sua hora. O tempo cobrava que se cumprisse seu destino, aquilo que viera de fato fazer. Todo seu sofrimento serviria de aprendizado pra lidar com a dor alheia, afinal fora seu próprio algoz.

Azulão passou a ser conhecido pelo seu nome próprio: Jorge de Ogum, fez sua obrigação, passados os anos, virou pai de santo do terreiro mais respeitado do lugar. Sabia das dores e agruras dos filhos e aconselhava, meninos, moças e velhos, como um pai aconselha seus filhos. Seu tambor atraia gente de longe. Ele não apagou seu passado. Apenas o transformou na pedra de toque do povo do lugar.

Ninguém jamais contestaria um homem que desafiava o precipício sem medo de mergulhar e, de lá, voltar renovado.  A vida tem seus próprios e improváveis caminhos e dentro da gente o barulho da nossa verdade é ensurdecedor. Um dia desaguamos em nós mesmos. Feito um rio que não evita o mar, por mais distante que esteja. Não há escapatória. Cumpra-se a missão.