CRÔNICA

 

Por Marco Dacosta

 

 

Na Union Square, em Nova Iorque,  há um relógio que conta os dias que sobram para o fim do planeta. É uma contagem que avança, negativamente, aos segundos, minutos e horas.  Ainda faltam muitos dígitos, quase difícil de contar, mas nos dá uma sensação de que em algum momento, alguém estará sentado naquele banco olhando o painel e aguardando o momento final. 

 

Por alguns minutos imagino a cena, ajudado por dezenas de jovens que passam usando máscara e fazendo protestos contra um outro grupo que não usa máscaras que defende teorias conspiratórias. O fim do mundo acontece aos poucos, me dá spoiler, me adianta o clima das horas finais.  E aí penso, em que lugar do mundo isso seria possível.  Respiro aliviado. Estou vivendo uma experiência sensorial única nessa vida, sobrevivendo a uma pandemia mundial, sob ameaça constante de destruição ambiental, recessão, crise de solidão e loucura.  Como minha salada, com arroz amarelo e pedaços de frango, lentamente olhando a polícia dando proteção aos manifestantes, que pedem o fim da polícia, contra grupos que pedem o fim das vacinas, que estão vivos porque tomaram vacinas. 

 

Angela Carter, escritora inglesa, muito conhecida por sua literatura pós-feminista e realismo mágico disse uma vez que as  cidades tem gêneros. Londres é um homem. Paris é uma mulher. Nova Iorque é um bem ajustado transsexual. Ela deve estar certa. Há uma mistura de arquitetura, gente e posturas que nos confunde e nos desafia. Há coisas que acontecem aqui que não caberiam em nenhum lugar do mundo.  Há enfrentamento e resignação, uma ostentação capitalista e as maiores manifestações socialistas que já vi na vida. 

 

Há um ambiente de ciclos. As estações do ano colaboram para que existam quatro cidades a cada ano. O calor de começo de verão, trinta graus e sem vento. O ar quente vem dos trilhos  do metrô e me sufoca. Me recordo da infância nas oficinas de Deodoro, onde meu pai e avô trabalharam por anos, com cheiro de graxa e ferro. Imigrante é assim – dois mundos que se misturam a cada dia.  Eram verões também naquelas ruas mal cuidadas do Rio. São dias de verão apenas, e eu um desconhecido, já com a pele envelhecida, cheio de lembranças que circulam e voltam ao menor raio de luz, que revela cores, ou aromas que me levam ao passado.

 

O inverno não é diferente no impacto em nosso corpo. Passamos a nos vestir com camadas e ao entrar nos lugares aquecidos vamos nos despindo, aos poucos.  Não há cheiros, as árvores mortas – não, espere.  Elas não estão mortas. Elas entram em um estado de sono, hibernam como ursos, por meses até chegar a primavera.  Somente vivendo aqui aprendi a alegria que causa a primavera. Como já disse Camus, descubro a cada inverno que “dentro de mim há um verão invencível” 

 

O lugar que vivemos também define nossa personalidade. A periferia de uma cidade latino americana me escolheu na infância, por falta de recursos. Agora escolho a periferia de um país rico porque aprendi que são os bairros periféricos e populares que abrigam a minha forma de ver o mundo. Aqui longe dos bairros sofisticados vivem as pessoas mais autênticas, onde existem mais manifestações culturais não pasteurizadas.  No Bronx, berço do Hip Hop e do Rap que contagiam as outras periferias de todo mundo, em seus muros grafitados, há um grande caleidoscópio humano, liquidificador de idiomas e cores de pele, onde o mais rico e poderoso país do mundo se reúne ao terceiro mundo. Juntos e misturados no vagão lotado do metrô. E não temos nada além de nossos bolsos cheios de sonhos. 

 

O telhado dos prédios da periferia nos dá uma distante visão do Central Park e um horizonte de prédios. Na outra ponta tem o World Trade Center, ou o que restou dele na versão ultra luminosa da torre que tomou seu lugar. No final de 2001 vi os gigantes de concreto  e aço afundando levantando uma imensa nuvem de poeira, com cheiro de cimento e tristeza.  Era meu primeiro verão vivendo na cidade, que se foi com o desespero nas ruas, com os cartazes e luzes das velas na Union Square e tantas outras praças e avenidas. O momento que transitamos entre turista e imigrante fica inesquecível na memória. 

 

Volto a Union Square –  transposição da Cinelândia no meu imaginário, como a avenida Rio Branco deve ter sido para meus bisavós um pouco da Europa que deixaram para trás na juventude. Transito aqui porque faço parte dessa fauna de loucos, ébrios, escritores, feministas, punks, revolucionários. Onde viver serei íntimo dessa massa que tanto enriquece a nossa experiência humana.  O lugar onde aconteceu a primeira manifestação de primeiro de Maio, onde pela primeira vez mulheres fizeram manifestação pelo voto. Pela Union Square caminharam e congregaram pessoas em sua volta a anarquista Emma Goldman, o revolucionário Leon Trotsky.  No banco que sento às vezes para comer halal food – comida árabe feita pelo também imigrante Saul do Egito, também sentaram Frida Khalo, Albert Einstein e Truman Capote, todos circulando na cidade em diferentes épocas.  

 

Há várias periferias.  Há também enclaves de artistas e andarilhos dentro da cidade desenhada para os profissionais de terno e gravata. O caminho até o Lower East side, que de gerações e gerações abriga levas de imigrantes. Primeiro foram os italianos, depois espanhóis e por último os latino americanos, que como eu, chegava para encontrar uma saída e justificar aquela frase bonita na base da estátua –  que venham os famintos por liberdade. Que venham os que fogem de guerras coletivas e pessoais, que venham os que só querem um pouco dessa energia que flui como aquele feixe de luz.

 

O relógio da Union Square segue marcando os segundos, minutos e horas para o fim do mundo. Somos todos temporários e somos lembrados disso olhando essa fantástica máquina de nos alertar que a vida voa diante de nossos olhos.  Olho para as pessoas passando, imagino as meninas correndo para a Times Square comemorando o fim da Segunda Guerra, as atrizes, os poetas, as roupas pesadas e saias em camadas das senhoritas, o olhar triste do escravo, o grito do negro operário, a fumaça das chaminés que foram aos poucos sendo substituidas por edifícios de aço e acrílico. Como uma máquina de tempo imagino décadas do passado voando em frente aos meus olhos, e avançando para o futuro.  

 

Um dia um cara como eu estará sentado nesse banco e não sobrará mais números naquele imenso calendário de dígitos. E ele poderá fechar os olhos e esperar, serenamente,  o fim de tudo.