A morte de Carlos Eduardo dentro de uma padaria na zona sul do Rio de Janeiro, na sexta-feira 27, não impediu o ‘funcionamento normal’ do local. Os clientes que foram ao estabelecimento naquela manhã tomaram o seu café no mesmo espaço em que o corpo do homem, em situação de rua, aguardava ser recolhido, coberto por um plástico preto. A situação se manteve por duas horas até a chegada da Polícia Civil, conforme relatou o jornal O Globo.

O homem, que tinha tuberculose em estágio avançado, teria entrado na Confeitaria e Lanchonete Ipanema, na esquina das ruas Joana Angélica e Visconde de Pirajá, por volta das 7h20 da manhã para pedir ajuda. Pessoas que frequentavam o local no momento relataram ao jornal que os pedidos de Carlos Eduardo não foram ouvidos.
Carta Capital, 30/11/2020

 

Chi viene domani mattina?
Chi viene domani pomeriggio?
Chi?
Cos’è l’uovo fritto?
Cos’è l’uovo marcio?
Cos’è l’uovo sodo?
Chi è un uomo?
Chi sono io?¹

 

E, entretanto, morre-se. Continua-se a morrer. Numa praça, num bar, padaria qualquer, entra, sai, um café, um sanduíche, bom dia, boa noite. E morre-se.

O governante chefe da nação faz da morte o slogan do seu governo, evoca-a constantemente, como um modelo de vida, um símbolo da coragem extrema com que um verdadeiro homem deve enfrentar os perigos; e perante o massacre diário, as valas comuns, as dezenas de milhares de cadáveres, diz que todos nós teremos de morrer um dia, então, para que ter medo? E quando a morte se torna trivial, função corporal, fisiologia biológica, não importa o número de cadáveres ou a forma da sua morte. O que importa é que estes mortos não interrompam o fluxo normal dos vivos.

Morre-se assassinado por vigilantes à porta de um supermercado, morre-se metralhado por cem tiros disparados por uma patrulha do exército, morre-se de Covid abandonado em macas de corredores hospitalares infames, morre-se porque sim: porque assim é.

Se vier a morrer entre as prateleiras de uma loja de departamentos, o diligente funcionário cobre o corpo com alguns guarda-chuvas abertos, uma espécie de biombo à espera da chegada da ambulância. Uma, duas, três, quatro, cinco horas. Demasiado tempo perdido, a loja de departamento não pode parar, o morto está morto. Os guarda-chuvas não permitem a visão. Está tudo bem. Portas abertas, carrinhos cheios, prateleiras, promoções, descontos.

Nossa Senhora da Paz é o nome de uma praça. Uma padaria, um café, um sanduíche, mesinhas, bom dia, boa noite. De repente um pobre, o de sempre, um mendigo, um homem em situação da rua, um dos muitos invisíveis da metrópole na sua luta diária pela existência, estende a mão, um trocado, uma moeda, quem sabe, talvez alguém compre um lanche e ele consiga descolar o rango. A morte não espera, quando chega, ela vem pra valer. O homem cai ao chão, a padaria está cheia. O homem está coberto com um manto…, um saco preto, um saco do lixo preto. O homem no saco do lixo, estendido, o corpo estendido no chão. A padaria continua aberta, um café um sanduíche bom dia boa noite.

Um freguês intervém e pede ao proprietário que feche o local e afaste a freguesia, um pouco de humanidade: “Ninguém teve humanidade quando ele estava jogado na rua, agora que morreu jogado na minha padaria querem que eu tenha humanidade”. Fechar, nem pensar. Portas abertas, como sempre. Se quiser pode sentar e pedir, pingado, pão na chapa, o que for. O cadáver a poucos metros está dentro de um saco do lixo preto. O cadáver é o lixo que, mais cedo ou mais tarde, será recolhido e levado embora. Duas horas para ser removido. Poderiam ter atrasado por três quatro cinco, a padaria continuou a fazer rodar normalmente a desumanidade de uma economia que não pode ser interrompida, uma padaria onde a única pessoa realmente viva, na sua dignidade humilhada, é um homem enfiado num saco de plástico, como lixo, como lixo para se levar embora.


¹ Quem vem amanhã de manhã? Quem vem amanhã à tarde? Quem? O que é um ovo frito? O que é um ovo podre? O que é um ovo cozido? O que é um homem? Quem sou eu? – Davide N.