A poucos dias de terminar 2020, o ano marcado pela pandemia da Covid 19, a Argentina tem a possibilidade de dar um passo à frente a fim de deter outra epidemia; a morte de mulheres por abortos clandestinos. Desde 1980 o aborto inseguro é a principal causa de morte materna no país.

Diante disso, muitos movimentos em prol do direito à interrupção voluntária da gravidez vêm se articulando para mudar esta realidade.

Em 2018, o projeto de legalização do aborto passou na câmara dos deputados da Argentina, mas foi barrado no Senado. Este ano a situação se repete, o projeto foi aprovado no início de dezembro por 131 votos a favor e 117 contra e no próximo dia 29 de dezembro, voltará novamente à votação no Senado.

Esta é a nona vez que um projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez tramita no Congresso Argentino e diferentemente de outras vezes, este vez tem o apoio do presidente em exercício Alberto Fernández.

A expectativa dos movimentos de mulheres e de diversas organizações a favor dos direitos humanos é que dessa vez a lei seja aprovada e o direito ao aborto finalmente previsto em lei, atualizando assim uma lei de 100 anos atrás.

A iniciativa Argentina representa um grande passo para toda a América Latina

O estudo “ Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai”, publicado em 2020 mostrou que a cada ano 47 mil mulheres de todo o mundo morrem em decorrência do aborto inseguro, sendo a América Latina a região com leis mais restritivas para o aborto e com maior número de abortos inseguros.

Caso o aborto seja legalizado, a Argentina será o quinto país da América Latina e Caribe a dar às mulheres o direito a escolherem pela interrupção voluntária da gravidez. Os países que já têm o aborto previsto em lei são: Cuba desde 1965, Porto Rico desde 1973, Guiana 1995 e Uruguai desde 2012. Diversos outros países da região possuem leis intermediárias em relação ao aborto e El Salvador, Honduras, Nicarágua e República Dominicana são os países que criminalizam totalmente a prática.

A experiência Uruguaia

O processo mais contemporâneo na legalização do aborto foi o do Uruguai e possui algumas características importantes que valem a pena observarmos.

A legislação anterior à legalização do aborto no Uruguai era de 1938 e permitia o procedimento nos casos em que a honra do marido estivesse em jogo, quando havia risco de vida para a mulher e em casos de pobreza extrema. Naquela época, os métodos contraceptivos não estavam universalmente disponíveis e as políticas de educação não incluíam acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos.

É importante observar que o Uruguai é um país com uma história importante de separação entre Igreja e Estado, diferente de quase toda a América Latina onde a maioria dos Estados na prática não são laicos.

Possivelmente esse fato fez com que a pauta do aborto fosse sendo cada vez mais discutido e a partir de 1995 o debate sobre legalização ou descriminalização do aborto foi sendo intensificado.

Assim, entre 2001 e 2012 o país iniciou um “Plano de iniciativas sanitárias contra abortos inseguros”, com o apoio da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo) além de outros parceiros nacionais e internacionais.

Em outubro de 2012, o país aprovou a lei de interrupção voluntária da gravidez para gestações de até 12 semanas ou 14 semanas completas em casos de estupro. O procedimento somente pode ser realizado pelas instituições do Serviço Nacional de Saúde do Uruguai, sendo proibido em clínicas privadas do país.

O processo de acompanhamento da interrupção voluntária da gestação inclui a avaliação de uma equipe multidisciplinar que atende e acompanha a paciente durante todo o processo, sendo obrigatório um período de reflexão de cinco dias entre a consulta com a equipe e o procedimento em si. Para a maioria dos casos, o método escolhido é o Kit de mifepristone-misoprostol.

Desde outubro de 2012, mês da legalização do aborto, até 2016, o país registrou somente 2 mortes por abortos, sendo que essas mortes foram em decorrência de procedimentos realizados fora do sistema de saúde. Outro dado importante foi a redução de mortes maternas, de 25 para 14 mulheres (a cada 100 mil nascidos vivos), ou seja, legalizar o aborto também impactou na mortalidade materna em geral.

Não existem dados anteriores sobre o número de abortos inseguros, mas logo após a legalização, a taxa de procedimentos para interromper gestações era de 12 em cada 1000 mulheres de 15 a 45 anos, segundo estatísticas oficiais do Ministério da Saúde.

Estes números estão entre os mais baixos do mundo e isso não está associado somente à implementação da legaização do aborto, mas também à política de saúde implementada nos anos anteriores.

Para se ter uma ideia, no Brasil, onde a prática é ilegal, segundo dados do Ministério da Saúde, em 2016, eram registrados 4 mortes por dia em hospitais em decorrência de complicações no aborto, cerca de 1.500 mortes de mulheres por ano.

O catolicismo e mais contemporaneamente as religiões evangélicas, se articulam politicamente para interferir em diversos campos impondo suas crenças e valores. No caso do aborto, o debate sobre saúde pública sempre fica em segundo lugar e o centro da questão torna-se o corpo das mulheres como espaços de controle, disputas e dominação por parte das religiões.

Lara Va.

Os desafios que as mulheres ainda precisam enfrentar

Diversos estudos apontam que as mulheres com maior risco de morte e sequelas derivadas do aborto inseguro são jovens, indígenas, negras periféricas ou residentes em áreas rurais pobres, com menos acesso a educação formal, informação sobre saúde sexual e reprodutiva e acesso a meios contraceptivos. As mulheres que estão em relacionamentos abusivos ou que sofrem violência sexual completam o quadro de vulnerabilidades.

Nesse contexto é preciso olhar o direito ao aborto como um compromisso da sociedade e dos órgãos de saúde com as mulheres, que muitas vezes estão à mercê das multiplas desigualdades, da falta de acesso a métodos contraceptivos pelos sistemas de saúde, além de situações de violência sexual intrafamiliar.

O passo que os sistemas de saúde e a formação profissional precisam dar

As diversas violências sofridas no processo de abortamento, seja desejado ou não pela mulher, são consideradas violência obstétrica. A humilhação, os maus tratos, o abandono e a recusa de profissionais em acompanhar o processo de abortamento são frequentemente relatados por mulheres.

É urgente que a formação de todos os profissionais da assistência obstétrica incluam o aborto como prática que precisa ser aprendida em seus múltiplos aspectos. É preciso dar a oportunidade dos estudantes de Obstetrícia (sejam médicos ou enfermeiros) refletirem sobre a escolha da especialidade em Ginecologia e Obstetrícia, contemplando que o aborto é uma rotina que fará parte das suas atividades profissionais.

Ao não fazer isso, chegamos à taxa média de até 50% de profissionais da obstetrícia que alegam objeção de consciência, negando-se a prestar atendimento em casos de aborto.

Apesar de a maior parte dos casos de objeção de consciência alegarem motivos religiosos, estudos atestam que a postura dos profissionais muda dependendo de quem necessita do procedimento e profissionais que se negam rotineiramente a realização de abortos, abrem exceção no caso de familiares ou conhecidos.

É importante ressaltar que a legalização do aborto é apenas um primeiro passo, importante, fundamental, mas que precisa ser seguido de muitos outros. É preciso Instituições com equipes multidisciplinares treinadas para o acompanhamento de todo o processo e acesso universal a métodos contraceptivos.

É preciso um Estado com seus respectivos sistemas de saúde laicos e que priorizem a saúde e a vida das pessoas acima de tudo.

 

1-From risk and harm reduction to decriminalizing abortion: The Uruguayan model for women’s rights. Acesso em: https://doi.org/10.1016/j.ijgo.2016.06.003Citations: 11

2- Abortion Worldwide- 20 YEARS OF REFORM. Acesso em: https://www.reproductiverights.org/sites/crr.civicactions.net/files/documents/20Years_Reform_Report.pdf

3- A legislação sobre o Aborto nos Países da América Latina: uma Revisão Narrativa. Acesso em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/periodicos/ccs_artigos/legislacao_aborto.pdf

4- Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai. Acesso em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36suppl1/e00168419/

5- Aborto induzido: Conhecimento, Atitude e Prática de Ginecologista e Obstetras no Brasil. Acesso em: https://apublica.org/wp-content/uploads/2013/09/pesquisa_ginecologistas.pdf