CRÔNICA

 

“Com o passar dos anos, não sei se por consolo ou sabedoria, aprendi a considerar os sonhos como parte integrante da vida.” Essa é a frase de abertura da Introdução da edição brasileira do mais recente livro de Paul B. Preciado – Um Apartamento em Urano: Crônicas da Travessia (2020). Nenhuma palavra poderia me afagar mais nesse atribulado e confuso 2020. Minha vida, no claustro, ganhou a calmaria das águas de Nanã. Eu, como filha dela, faço dessas águas paradas o berço para o ressurgimento, aceitei a calmaria. Mas não nego a sede por encontros, por abraços, afagos, saliva, cheiros, suor… não posso negar a ebulição. É aí que encontro consolo nas reflexões de Preciado – não vivo só no claustro e decidi incluir minhas experiências oníricas em minhas memórias deste ano de travessia. Por isso escrevo. 

Começo a contar do nosso primeiro encontro. Nós, que em função dos isolamentos nunca trocamos olhares, afagos ou suor. Jamais nos abraçamos e, acordada, jamais senti seu cheiro. Mas quando meu corpo repousa, nossos encontros são inesquecíveis. E como no universo onírico o tempo não é linear e os acontecimentos caem a nossa volta de maneira desordenada, tal qual uma chuva de verão, hoje sonhei com nosso primeiro encontro. Muito embora, já tenha sonhado com tantos outros deles. 

Volto às palavras de Preciado para lembrar que “Há sonhos que, por sua intensidade sensorial, às vezes pelo realismo, às vezes justamente pela falta dele, merecem entrar numa biografia em pé de igualdade com o mais notório dos fatos acontecidos durante aquilo a que normalmente se reduzem as ditas experiências vividas, ou seja, as que ocorrem durante a vigília.” Esta noite nós nos encontramos em um hotel antigo na mata. A construção de madeira fazia parecer que era uma área rural cercada de mata atlântica. Havia umidade, pássaros, sapos a coachar e grilos. 

A razão de eu estar naquele hotel não  era exatamente você. Eu estava ali para participar de um evento acadêmico e eu sabia que você também participaria, mas não havia um encontro combinado previamente. Eu cheguei tarde da noite e me hospedei ali  para preparar minha apresentação, que seria na manhã seguinte. Organizei todo o quarto, liguei o computador e saí para fumar na varanda – um largo corredor de piso de madeira com vista para a mata. Eu vestia uma camiseta de dormir. Branca, velha e larga. Não havia ninguém ali e como sempre faço quando estou só eu ouvia os sons do silêncio. Os sons do aconchego da mata me acalmavam e já podia sentir na pele o toque da umidade da floresta. Terminei o cigarro em paz. Respirei. E quando ergui a cabeça e meus olhos mergulharam direto nos seus. 

Um susto. Um sorriso. Uau! Era você! A surpresa sentida revelava que o encontro não fora planejado. Não ali, não naquela hora. Nos abraçamos e senti seu cheiro pela primeira vez. Fechei os olhos e senti a pele inteira arrepiar, meus mamilos enrijecerem e meu ventre aquecer a ponto de suar. Foi um abraço demorado, digno do desejo que o criara. Nesse momento houve um quê de entorpecimento, cores a girar e não sei o que houve. Lembro de enxergar tons de cor de rosa e sentir cheiro de vinho.  Na sequência eu já estava sentada na cama a conversar contigo, que me olhava de uma rede. 

Me sentia hipnotizada por aquela conversa e dela só me recordo fragmentos. Falamos sobre corpo, Deleuze, Preciado (como não!) e você cantou uma música de que muito gosto. Engraçado que fora uma música vinda direto da minha adolescência – Astronauta de Mármore. Fazia muito sentido naquele momento e senti vontade de chorar.  Te falei sobre a intimidade que era chorar diante de alguém no primeiro encontro. Era mais íntimo que o sexo. Não havíamos feito sexo até aquele momento, mas quando eu chorei você me abraçou e eu guardei sua cabeça entre meus seios. Já não havia a camiseta velha.  Apertei seu rosto em meu peito e foi um entrelaçamento intenso e fluido de corpos. 

O dia já amanhecia e você percorria meu pescoço, braços e seios com a boca. Eu estremeci. E com olhos de ressaca te olhei a tremer como quem goza do encontro desejado, sorri. Ouvimos batidas na porta. Uma voz de mulher gritava meu nome. “Você está atrasada!”. E eu nem havia preparado minha apresentação. Vesti a camiseta branca, velha e rasgada, uma bota e fui para a apresentação. Me lembro de sorrir e sentir acariciar minha pele no caminho daquele velho corredor com piso de madeira. 

Acordei suada.  Ofegante. A percorrer meus seios com as mãos. Não venha me dizer que não vivi esse encontro. Eu te responderia com Fernando Pessoa: “Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho. Nós, o que nos supomos, nos fazemos. Se com atenta mente, resistirmos em crê-lo.” 

*Seguindo desde março o isolamento social em função do coronavírus, a jornalista Lillian Bento toma aqui a reflexão do filósofo Paul B. Preciado (2020) de que as jornadas oníricas podem e devem integrar nossa biografia tanto quanto as experiências vividas durante a vigília. Por isso, nessa série de crônicas (ou contos) de quarentena, ela narra suas experiências oníricas durante esse …. bem, esse ano de 2020 que nos golpeou.  

A foto é de autoria desta que vos escreve. Uma  Releitura sertaneja da escultura “Love”, de Alexander Milov e Caliandra, na zona rural de Arinos (MG)