MÚSICA

 

 

História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 9

Vejo a mia Alma Soul escoar pelo ralo. É que ontem fui a um casório. Sabe aquela cafonice das madrinhas de roupa alugada, da lúgubre fila dos cumprimentos, dos rissoles, do refri quente, do brinde de braços entrelaçados? Pois é. Eu estava lá com minha gravata patibular, parte daquilo tudo. Estava de bom humor, disposto a perdoar até mesmo aquele conjuntinho musical infame que, na entrada da noiva na igreja, começou a tocar o Zarathustra de Richard Strauss. Sem dúvida, a escolha não foi do infeliz trompetista, mas das famílias dos felicíssimos pais-sogros que desembolsaram o dim-dim da festança. Sem saber, é claro, que tal música se inspirava no homônimo livro de Nietzsche, o filósofo arauto da morte de Deus. E assim foi que na igreja a noiva me aparece, com Nietzsche e Zarathustra. Perdoei. Mas foi na hora da valsa que deu merda pra valer. O povo achou lindo, o mulherio de longo colorido até chorou. Champagne per brindare a un incontro

cantava o deplorável tenor contratado, dançava a noiva sorridente nos braços do pai orgulho. Con te che già eri di un altro… e no salão havia gente que cantava junto. A famosa música de Peppino de Capri, uma melodia água com açúcar, deu merecidamente a volta ao mundo. Peppino é um mais que honesto representante da música italiana nacional-popular. Desde os anos cinquenta, frequenta as paradas, primeiro como alegre intérprete de twist, depois como refinado cantor romântico. Milhões de discos vendidos. Palmas pra ele. Champange, seu maior sucesso, hoje faz as sogras do salão chorarem. Eu também choro. E muito. Choro de raiva e desespero. Quero entrar no meio da pista, quebrar o trompete profanador. Não porque tocasse mal, nada a ver. Queria interromper a função a gritos. E dizer pra todo mundo que não é pra cantar música de corno. Champanhe é música de corno, sim senhor! Conta a história de um cara traído pela noiva e que se encontra sozinho com o garçom. O mesmo garçom consolador de Reginaldo Rossi. E o cara lá, brindando alla fine di un amore, ao fim de um amore, enquanto a mulher già era di un altro, já era de um outro, agora só sobra esse copo e um ricordo da gettare via, e uma lembrança para ser jogada fora. Sim, foi isso mesmo que eu falei, no casamento dançaram ao som de uma música em que a mulher foi embora com outro. Pobre Peppino, povero Peppino mio, se puder, perdoe, eles não sabem o que fazem.

Volto pra casa e me enfio no chuveiro. E con una specie di sorriso, all’ombra dell’ultimo sole, na sombra do último sol que é em mim, procuro afagar minha alma abandonada nos braços de um garçom e esperar que a espuma do champangne, escoe pelo ralo. Mas a deprê é forte. E então lembro quando acordei de uma outra deprê, graças ao maior grupo de rock italiano de todos os tempos. Nascido na onda do progressive dos anos setenta, o Premiata Forneria Marconi trocou de nome quando decidiu colocar sua arte e seu imenso virtuosismo técnico a serviço das canções sérias e tristes de Fabrizio De André, que sempre detestei com orgulho. Suas canções (letras poéticas, políticas, todo aquele rosário inaudível da época) muito longe da música enquanto tal, quase faladas, declamadas, acompanhadas por um violãozinho raquítico, com o PFM (o novo nome do Premiata Forneria…) adquiriram vida, beleza, dinâmica, força e o meu definitivo respeito. Quando o show se abriu, foi uma festa de som e felicidade, De André entrou com honra no meu repertório: à sombra do último sol cochilava um pescador…

Os grandes grupos da gloriosa época do progressive, aquele tipo de rock feito de virtuosismo, canções de quinze minutos e aspirações eruditas, produziram obras-primas memoráveis, infelizmente. Nem pensar em cantar no banheiro. Difícil demais. O New Trolls foi além de qualquer expectativa. Chamou uma grande orquestra sinfônica para um disco memorável: Concerto Grosso. Uma longa composição concebida como um concerto barroco no qual os músicos deram o melhor de si. Aqui vai um trechinho.

Quem lembrou do Jethro Tull, do Yes, do Genesis, do Deep Purple, tem toda razão. O New Trolls estava naquela vibe, que dez anos depois foi destruída (com razão) pelo Punk. Mas os caras eram bons: chapéu! Mas agora pego o meu banquinho e saio de mansinho, quem vai entrar no meu chuveiro é um cara que conseguiu enfiar uma palavra inacreditável na sua canção. A palavra é “bávero“: aquela parte do casaco antes da gola. Quantas vezes por dia você pronuncia essa palavra? Eu, nunca. Vado per la mia strada con il bavero su, Sigo meu caminho com o “bávero” levantado.

Grande canção, com direito a shampoo e sabonete perfumado! Eduardo de Crescenzo, canta acompanhado por um supergrupo, o próprio New Trolls, que dá prova de grande versatilidade e esmero melódico em um notável tapete vocal. E se alguém lembrou de Billy Joel e sua celebérrima Just the way you are, nesse caso também, tem toda razão. A canção do “Bávero” parece um cópia-e-cola com tanto de solo de sax incluído. Pouco importa, eu vou cantando as duas.

Agora digam três palavras italianas, as primeiras que vêm, assim, na lata… já sei: Máfia, Pizza e Mamma. Sobre a Mamma, existe uma música de 1940 que os italianos adoram cantar, Mamma sono tanto felice, e que meio mundo conhece pela voz de Beniamino Gigli.

Uma canção de outros tempos, letra, música, uma pieguice só. Ma la mamma é sempre la mamma, e Eduardo de Crescenzo escreve e canta a mais linda homenagem à Mãe que eu já ouvi. A letra é uma mistura de lembranças e sensações que o amor da mãe deixa para sempre em quem teve a sorte de senti-lo. Eu penso na minha mamma, devastada por uma doença que, mesmo assim, não conseguiu apagar seu sorriso. La mamma é sempre la mamma e aquele dia entranhada na cadeira de roda, ao solzinho da manhã no parque, sorria muda para esse filho maluco com quase sessenta anos. Foi a última vez que a vi. Passou sua mão no meu rosto, come se dissesse, não se preocupe, filho, olha, o sol está aí, e amanhã também, não fique triste, eu estarei com você sempre, porque Il sole é un amore che continua anche quando non c’è più , o sol é um amor que continua mesmo quando se põe. Vai filho, C’è il sole.

É isso aí, mamma, é isso aí. E fui.


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