CRÔNICA

 

 

A imagem era de um corpo de mulher, magra e de cabelos castanhos escuros. Não era uma tela, mas uma cartolina e parecia ser uma pintura guache – como as aquarelas que fazíamos nas escolas. Estava em um corredor azul clarinho e nenhuma pessoa circulava. Não era sonho, nem delírio febril, mas caminhava com uma gripe forte, vagando em um corredor de hospital psiquiátrico.

Foi assim que acordei: depois de uma longa noite, escutando gemidos e sons estranhos, como cadeiras de metal arranhando no chão. Estava em Belo Horizonte e o ano era 1989. Eu tinha apenas 23 anos e a longa avenida do Contorno era a minha fronteira mais distante.

Ao meu lado, enquanto observava a pintura, uma mulher vestida de branco parecia sussurrar em meu ouvido e mantinha a calma, para não me assustar “Eu que pintei, gostou?” – adiantou–se a minha curiosidade diante da pintura “Meu nome é Alice e eu trabalho aqui.”

Apresentei–me a Alice e expliquei que não era interno. A história era complicada, mas insisti – não sou paciente. Vim visitar um primo, médico, que não estava de plantão e havia ficado muito tarde para voltar a Juiz de Fora, onde estava hospedado, porque morava mesmo no Rio de Janeiro. “Nunca estive lá”, disse Alice, olhando fixamente para sua pintura.

– Eu sou primo de um médico, não sabia que o hospital estava em greve e ele viajando.

– Entendo. Estamos fechados há muitas semanas. Ele não te disse? Perguntou, desconfiada.

Expliquei que há muito não o via e resolvi fazer uma surpresa. Na época, sem celular e sem facilidades de comunicação, essas surpresas eram sempre arriscadas.

Peguei um ônibus de alguns cruzeiros que minha avó me deu – “Vá sim visitar seu primo”, ela me incentivou. Levei só uma mochila e um endereço na agenda de papel. Na portaria do hospital me deram o endereço onde ele vivia – Vila Cristina, mas não me explicaram muito. Na rodoviária, uma mulher me perguntou: “Cristina um, dois ou três?”, revelando que eram bairros planejados e imensos. Só consegui voltar para o centro depois de percorrer montanhas, sem sucesso.

– Voltar ao hospital e pedir para dormir aqui foi a solução porque já não havia mais ônibus para voltar a Juiz de Fora. Segui explicando.

Alice me olhou com atenção. Eram seis da manhã e eu descabelado, olhando fixamente para uma pintura no corredor. Afinal quem era aquele cara? Tinha razão no olhar de estranhamento.

Percebi que ela prestava atenção a cada gesto, e que verificava cada vez que eu gaguejava. “Deve ser nervoso” – espere que já volto. De longe vi que falava com um segurança e me olhava, no final daquele corredor distante.

Quando aceitei dormir não sabia que era uma clínica psiquiátrica. Era um imenso hospital público com alas inteiras abandonadas e sem nenhuma circulação de visitas. Os poucos médicos e funcionários que via eram plantonistas de uma greve que havia paralisado todo o atendimento. O hospital estava fechado, cercado por grades.

Será que ela pensou que sou um louco internado? E se pensa, como vou provar que não sou louco? Claro!, pensei logo. Se estivesse internado, meu nome estaria em alguma lista. Respirei aliviado. Não. Aí lembrei do filme argentino de alguns anos antes, que havia assistido: “O Homem olhando ao sudoeste”, no qual um médico ficou surpreso ao saber que na sua enfermaria de psiquiatria havia um paciente a mais. O homem justificou que era um extraterrestre e que foi para o manicômio porque se fosse para qualquer lugar do planeta seria enviado para um hospital desses. Então resolveu se adiantar aos fatos. A minha história de como fui parar lá era tão fantástica e inacreditável como no filme.

Ninguém imaginaria que do nada apareceu um louco a mais em um hospício. Que ideia! – sorri para mim mesmo. Isso aconteceu em um filme de ficção científica! Olhei novamente e Alice havia desaparecido. Fui olhando a cada porta de enfermaria em busca de uma saída. Voltei à salinha em que havia dormido: lá estava o colchão … e lembrei do nome. Cleber. Foi o segurança que me deixou entrar.

Alice estava atrás de mim quando joguei a mochila nas costas. “Onde você vai?” me perguntou, em voz alta. Ela mantinha as mãos para trás e logo imaginei que segurava uma injeção.

– Tenho pavor de agulhas, como é mesmo o nome ? – “aiquimofobia” – completou Alice, mostrando as mãos livres. É isso que você tem ? Sorriu. “É, deve ser isso” – respondi. Quando era criança uma enfermeira quebrou uma agulha em mim e nunca me esqueci disso. Afinal. Doutora Alice? Enfermeira ?

– Psiquiatra, com especialidades em distúrbios do sono.

Ah que bom, respirei aliviado. Por isso me perguntou da minha noite, não é ?

Fui me afastando em direção a porta e ela falou alto ” Qual é o nome mesmo do segurança que deixou você dormir aqui”?

Respirei fundo: “Alvaro”

Doutora Alice olhou para um papel e me respondeu. “Não tem nenhum Alvaro aqui listado na segurança. Você tem certeza?”

Nesse momento gelei por inteiro. Respirei fundo e imaginei que poderia ficar ali preso, ser sedado e jamais sair. Quem acreditaria em mim? Toda a minha história poderia ser um surto e meu nome nas listagens datilografadas facilmente perdido em tantas listas de um hospital em greve.

Virei–me para Alice e respondi com calma: “Deve ter algum engano. O segurança da guarita me deixou entrar e me indicou a cama para dormir. Eu provei que era parente de um médico do hospital.”

Ela olhou novamente o papel e sorriu: “Boa viagem.”

Desci acelerado as ladeiras que dão acesso ao hospital, quase correndo e pensando que seria agarrado por alguns seguranças e colocado em alguma sala com camisa de força. A imaginação e tantos livros de Agatha Christie só encheram minha cabeça de tramas e crimes. Naquele momento eu já tinha traçado toda minha história – confundido com louco, sedado, amarrado e preso. Quem afinal iria me livrar dessa situação? Meu primo poderia levar meses para voltar e até lá eu estaria como um zumbi.

Desci escadas e cheguei a guarita. Quase livre, respirei aliviado. Dois seguranças fizeram o sinal de legal com o dedo e abriram os grandes e pesados portões. Agradeci.

Andei alguns metros e disse a um deles, gordinho com quepe, que comia um sanduíche. “Diga por favor a doutora Alice ‘o meu muito obrigado’ pela atenção”

Doutora quem? Ahh, aquela mulher é interna.

Voltei para Juiz e Fora jurando nunca mais voltar a Belo Horizonte. Uma avenida do contorno sem fim, onde você gira até ficar tonto. Um hospital em greve, uma louca que se passa por médica, conjuntos habitacionais com nomes parecidos. A tentativa virou piada familiar durante anos. Mesmo convidado, passei duas décadas com medo de voltar.

A boa lembrança naquele dia veio de Dona Alayde. Abri a porta da casa da minha avó em Juiz de Fora e ela sorridente me recebeu “Já voltou? Você é muito doido”