CRÔNICA

 

 

Existem histórias de amor que nos desafiam a imaginar um mundo diferente. Recentemente lembrei da relação de amor da famosa poetisa norte-americana Elizabeth Bishop e a artista plástica brasileira Maria Carlota de Macedo Soares, a Lotta.  Sem formação formal, ela foi uma das grandes arquitetas brasileiras – em um tempo que isso era possível.

Me transportei para um Rio de janeiro que não conheci, uma cidade mágica, ousada, quando bondes transitavam pelas ruas, onde milhares migraram do interior em busca de uma vida melhor, lugar onde jardins floresciam e talentos brotavam – pelo menos na imaginação saudosista de minha avó. Na verdade sei que era uma Parte Paris tropical para uma elite, parte inferno nos barracos de zinco dos morros.  Vou adiantar: essa não é uma história de amor com final feliz e isso que faz dela interessante.

Ambientada em lugares que conheço bem – a região serrana carioca, a zona sul do Rio e Nova Iorque – essa relação terminou exatamente quando nasci, na metade dos anos 60 e havia se arrastado dolorosamente e apaixonadamente por dezesseis  anos. Acho que por não ser uma história de minha época, demorei tanto para conhecê-la. Há política, contradições, raiva, desespero e abandono em cada linha da vida delas.

Quem já teve uma relação para além das fronteiras sabe das dificuldades e desafios desse tipo de relação intercultural e intercalada pela distância.  Menos dramática hoje em tempos globalizados e de curtas distâncias, nos anos 50 e na época que cartas se perdiam nos correios –  cada separação parecia ser uma perda difícil de sobreviver. As drogas e o álcool foram em muitos casos os combustíveis dessas saudades e afastamentos. Algumas histórias como de Elizabeth e Lotta desrespeitaram fronteiras, tempo e convenções sociais.

Desde que buscando a ”cura geográfica” a poetisa pisou pela primeira vez em terras Brasileiras, nos anos 50 – Bishop viveu uma paixão avassaladora com Lotta, uma artista parisiense, educada na Bélgica e transplantada ao Rio, onde incorporou a alma e ironia carioca.  Aluna de Portinari, ativista política, Lotta de Macedo Soares era uma figura fascinante e complexa.  É preciso dizer que elas também testaram modelos audaciosos para a época, como um triângulo amoroso a também artista plástica, Mary Marcy.

O romance  de Lotta e Bishop acabou de forma triste e violenta, depois de mais de uma década, no entanto viveram anos de paixão e criatividade. Ambas, produziram muito naqueles anos.  Se tornaram referência para muitas mulheres libertárias e que sonhavam com uma vida diferente do padrão da época, quando a maioria delas dependiam de maridos e família.

A história de Lotta e Bishop talvez seja minha maior referência e aprendizado de que muitas vezes não “ficamos” para sempre com o amor da nossa vida – almas criativas e livres, não conseguimos manter relações estáveis com essas paixões fulminantes de maravilhosas, que nos dão êxtase e alegrias e que desaparecem de nosso caminho.

Descobri com Lotta e Bishop, uma forma de romper meus preconceitos também ideológicos. Conheci um outro Carlos Lacerda, o amigo delas e governador que aprendi desde cedo a rejeitar por questões políticas, que mostra-se um conservador sem preconceitos e de convivência extremamente liberal em relação a o que era um tabu na época, uma relação entre mulheres. Enquanto na mesma época militantes de esquerda rejeitavam homossexuais e tinham posturas machistas, um político de direita transitava com tranquilidade pelo universo de notáveis lésbicas da elite carioca. Contradições que só o Brasil consegue produzir.

Eu entendo que a permissividade a respeito da orientação sexual era fruto do fato de ambas serem da elite intelectual e branca, mas analisando outros nomes da época que fizeram parte do governo Lacerda parece claro que não havia patrulhamento em relação à orientação sexual nas equipes.  Uma política inexplicável onde progressistas eram  caretas e os conservadores nomeavam a cargos e tarefas importantes homossexuais – como foi o caso de Lotta, apontada pelo governador para liderar o planejamento e construção do Aterro do Flamengo.

A obra do aterro era o maior parque urbano do mundo. Embora inspirado numa uma visão “central Park” da classe média carioca, o projeto acabou como um espaço de toda a cidade, lazer também da classe trabalhadora, de porteiros e empregadas domésticas. O Aterro se converteria décadas depois em uma área popular, bem diferente do que foi idealizado pela elite carioca. Tudo isso não tira o mérito e a coragem e protagonismo de uma mulher que foi a responsável pela execução dessa obra gigantesca e histórica, que mudou a geografia da cidade.

Há muitas injustiças a se corrigir na história do Rio, muitas mulheres esquecidas nos livros, poucas estátuas e lugares destinados a homenagear essas personagens incríveis femininos. A rigidez ideológica me tirou muitas vezes a possibilidade de ver além da política e apreciar as complexidades do ser humano.  A questão da ”perda” nessa história é  um tema de todos nós, independente da formação ideológica e crenças de como a sociedade deve se comportar. No amor, todos somos seres atormentados e confusos, na esquerda ou na direita.

Bishop era uma incógnita. Parecia não entender, no entanto, as dinâmicas da política latino americana. Lotta era sua intérprete e por ser conservadora, uma tradutora incompleta da realidade de fora da sua bolha de classe média alta.  A poesia da escritora norte-americana, como já disse Howard Moss, editor de poesia da revista New Yorker, “não é acadêmica. É beat, experiente novata, métrica, silábica. Para o jornalista “É pura e no tom perfeito”. Comprei alguns de seus trabalhos e hoje fazem parte de minhas leituras preferidas.

Bishop falava muito de rupturas, mas a perda  que me refiro neste texto sobre Lotta e ela, não tem cor, tem dor – se me permite a rima poética e a calhar.  Esse romance não tem nada de incomum, não carrega nenhuma novidade em matéria de relação entre mulheres – nem mesmo o triângulo amoroso e uma filha adotiva.  A trama também não me parece nada de diferente a milhares de histórias de amor não aceitas pela sociedade. Então, por que é uma história que vale a pena ser contada?

O que mais me chama a atenção nessa relação foram os aspectos que não estão ligados a sua característica sensual de seus encontros e que são comuns a todos nós:  o sentimento e a dor da distância, da solidão acompanhada, de estar dividido entre a segurança e a monotonia de uma relação e a aventura de outra pautada pela euforia, a separação cultural entre os amantes, o sentir-se estrangeiro, a  partida e o retorno. Todos temas que nos acompanham a humanidade independente de orientação sexual ou posição social.

Alguns de nós.vivemos a beleza e a tristeza de perder alguém ou um sentimento e nunca mais conseguimos recuperá-lo. Todos podemos ter relações como plantas delicadas que devido a nossa inabilidade e desleixo, deixamos sem cuidado. Almas imaturas muitas vezes, deixam escapar esses amores.

A sensação de tristeza que há nessa história de final infeliz de Lotta e Bishop é percebemos que na vida  achamos pessoas ”flores raras” e que muitas vezes as deixamos morrer.