MÚSICA

 

 

História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 7

Sem saber quem sou, nem onde estou, dividido entre dois continentes, procuro conciliar o inconciliável, tradições diferentes e antagônicas. De um lado, o ritmo africano como base, do outro, o cantochão do gregoriano. E eu no meio. Não há acordo possível entre dois mundos tão distintos. Não há base comum para compartilhar valores. A presença milenar da hierarquia religiosa regulando a vida prática, imaginativa, cultural, pessoal e social das pessoas, moldou um jeito de ser e de interpretar o andamento das coisas e do mundo, um jeito de ser que não deixa espaço para outras formas interpretativas, mas que usa a sua como modelo único, a sólida base sobre a qual construir civilizações que sigam aqueles determinados parâmetros. E eu com isso? Eu, chuveirada entre Vinícius, Volare Oh Oh, em plena crise existencial, procuro viver senza malinconia, sem melancolia, como diziam as músicas felizes da década de trinta do século passado. Era o tempo do máximo fulgor do fascismo, o regime inventado por Benito Mussolini, baseado na ditadura do consenso fabricado a golpe de porrete, prisões, homicídios e deportações, mas também de investimentos industriais, grandes obras públicas, despesas militares e guerra. E o povo enchendo as praças e batendo palmas, senza malinconia. As músicas acompanhavam a euforia social, não havia mais ninguém para se opor ao regime, Gramsci acorrentado na prisão, Pertini no exílio, Matteotti assassinado… Vivere senza malinconia

E com imensa alegria, a massa aplaudia a guerra que o Duce, o chefe, o líder, Benito Mussolini, inventou quando decidiu invadir a Etiópia e a Somália, lá na África oriental, para ter, como todas as potências da época, un posto al sole, um lugar ao sol. Cantar não significa estar de acordo, significa, enxaguar, tirar suor e sujeira de mim. E no meu chuveiro posso cantar o que quiser, fingir ser um legionário indo à guerra, na África, para levar a civilização à pobre faccetta nera, rostinho preto, que me espera de braços abertos, sabendo que comigo chegará uma outra Lei e um novo Rei. Faccetta nera sarai romana, carinha preta serás romana, e per bandeira tu ci avrai quella italiana, e tua bandeira será agora a italiana. Sim, uma das canções italianas mais famosas de todos os tempos é um hino à guerra, à conquista colonial

Agora vamos dar um google. Digite o nome da mais importante cidade da Eritreia, Asmara. Os edifícios da arquitetura italiana do período fascista, o Cinema Impero (Império), a catedral, a sede da Fiat… a cidade era chamada de pequena Roma. E ainda hoje muitos italianos estão convencidos da necessidade de levar sua civilização ao mundo. Mas cantar no chuveiro não me torna racista, nem fascista. Tambem porquê as canções políticas são muito feias, se tirarmos a Marselhesa e a Internacional, as outras são horríveis. Marchinhas sem graça, músicas lúgubres, às vezes violentas, onde o combate, a morte estão em cada rima: con le budella dell’utlimo prete impiccheremo il papa e il re, com os intestinos do último padre enforcaremos o papa e o rei, diziam os anarquistas.

O rei tinha acabado de condecorar o general Bava Beccaris por ter atirado contra a multidão. Pão, Pão, gritavam as mulheres do povo faminto que não encontrou amparo e proteção nem na Igreja, muito pelo contrário: “apoio os altos sentimentos de ordem e justiça aos quais se inspira para cumprir seu importante dever” disse o arcebispo ao general. Centenas de mortos e feridos. Pouco tempo depois, vindo da América, o anarquista Gaetano Bresci matou o rei Umberto I: impiccheremo il papa e il re, enforcaremos o papa e o rei. A revolução estava no ar. Veio a Primeira Guerra Mundial; mesmo vencendo, a Itália despedaçada via seus soldados voltarem do front mais desamparados e abandonados do que no tempo da batalha. Greves, repressão, nasce o Partito Comunista Italiano,

A reação da burguesia foi duríssima. Nasceu o fascismo. Benito Mussolini ficou no poder até 1943, quando a Itália foi invadida pelas tropas aliadas, americanos, ingleses, e os nossos pracinhas. Com a nação destroçada e dividida ao meio, os alemães recolocaram Mussolini como chefe de uma república fantoche para contrastar o avanço americano. Foi a guerra civil. Fascistas e nazistas de um lado e a resistência do outro. E desde então Bella Ciao, se tornou uma das canções mais famosas do mundo

e que a Itália doa aos povos para dizer que a luta não tem hora para acabar.

Bella Ciao, Ele não: Ontem como hoje, Resistência! A luta não tem hora, e nem lugar para acabar. Por isso eu canto no chuveiro, para todo mundo ouvir, quem sabe minha voz atravesse os muros e inspire a vizinhança, estoure um panelaço daqueles de tremer o bairro, a cidade, o país, e mandar embora o coisa-ruim de Brasília.

Ferve em mim o sangue itálico, suas músicas políticas mexeram com o coração da massa, lotaram as praças, e eu estava lá, como hoje, molhado, shampoo nos olhos, como sempre, mas estava lá, naquele dia, ouvindo Francesco Guccini, músico fraquinho, mas, naquele momento, transformado em sacerdote da multidão, contar e cantar a história de um anarquista que tomba na tentativa de transformar a locomotiva em uma máquina de guerra, para que finalmente triunfe a justiça proletária. Francesco Guccini canta o desejo da massa, que se limita a aplaudir e decretar seu máximo triunfo.

A música política pode ter letras importantes, pode mexer com o espírito da massa, pode realmente servir como estopim, pode aglutinar pessoas e sentimentos. Pode. Mas que é chata pra cassete, ah, é mesmo. A música política é chata, e bota chata nisso. Menos uma. Menos a Internacional. Arturo Toscanini, um dos maiores maestros de todos os tempos, que foi metido na política a vida toda, mostrou a beleza daquilo que o mundo adotou como hino de libertação.

Agora tá na hora de ir, o General Bava Beccaris chegou, Mussolini e o coisa-ruim de Brasília também, vou, allons enfant de la Patrie, le jour de gloire est arrivé!


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