CRÔNICA

 

 

Dizem que aos nove anos de idade, Roberto Carlos gostava de ouvir e imitar o cantor sertanejo Bob Nelson. Não sei se é verdade, mas muitos de nós na infância e juventude gostávamos de imitá-lo, especialmente quando era o mocinho dos filmes da sessão da tarde, chegando de helicóptero e resgatando a namorada.  A imagem que tenho dele não é do rock brasileiro que me fazia dançar nas festinhas da escola e sim do romântico no final dos anos 70, que dava flores nos shows e encantava as mulheres da minha família. E a minha família era repleta de tias e primas.

Cresci ouvindo suas músicas, no radinho da minha mãe, enquanto ela lavava a louça  na cozinha. Dona Arlete nunca perdeu um só especial de Natal, minhas tias e avós preparavam jantares e ceias todas com pressa para assistirem ao seu musical que era religiosamente transmitido antes da missa do Galo. Minha avó e tias, primas, nenhuma mulher da família escapava do charme do Rei. No final do ano, Rita, uma amiga do grupo, trazia o disco de vinil para se exibir – ela tinha comprado naquela semana.  Assim que chegou a novidade do VHS, gravar e rever o show passou a ser uma rotina em nossas vidas.  Mesmo rabiscada, a imagem da fita era um milagre em um mundo ainda analógico.

Nenhuma delas superou uma prima mais velha chamada Débora, que morava em Marechal Hermes. Uma doçura de pessoa, preparava groselha gelada  e bolo de fubá para me alimentar, quando, na juventude, parava em sua casa na saída da escola. Débora tinha um caderninho de perguntas e respostas, colecionava revistas de fotonovela e sonhava com um príncipe encantado, que a levaria para longe – não tinha tanta ambição, só queria sair daquela casa sem laje.  Do telhado antigo pingavam água e lamentos. Seu pai, meu tio, vendia picolés na porta e muitas vezes jogava água fria – como no seu isopor – em seus sonhos de menino.  Mas “Dé” tinha uma vitrolinha, tinha Roberto, e também tinha suas revistinhas.  Quando a visitava, ela adorava dividir comigo suas novas paixões, emolduradas em uma tela de TV.

O tempo passou e Débora não viu nenhum de seus sonhos se realizar. Casou, descansou, entrou e saiu de igrejas, oscilou em fases de extremos como cantar em praças com roupas até o calcanhar e outras de descrédito, sambando atrás de um bloco no carnaval.

Tudo começou a mudar quando ela descobriu o Orkut e começamos a nos comunicar. A rede social criada por um engenheiro turco do Google atraiu milhares naqueles anos em que o computador deixava de ser um objeto luminoso em nossas casas e passava a ser nosso portal com o mundo. Fiquei feliz em reencontrá-la e poder passar mais um Natal com ela e minha mãe.  Embarquei da Flórida para o Rio, cheio de presentes, para mais um fim de ano no Brasil.

Depois de mais de vinte anos acompanhando seus shows e especiais na TV, Débora chegou a nossa casa ansiosa para compartilhar uma novidade.  Finalmente o Rei teria correspondido a seu amor: ”Ele conversou comigo”, disse sorrindo –  Como assim? perguntou minha mãe com ar invejoso. ”Ele é meu amigo no Orkut” disse, suspirando felicidade.

A troca de olhares na mesa revelava uma inquietação. Essa seria mais uma das alucinações da velha prima.  Na época, não tínhamos ainda ideia do que seria futuramente chamado perfil “fake” nas redes sociais, mas conhecíamos o longo histórico de Débora com amores fantasiosos.   ”Eu não falei antes por isso, ninguém acredita”.  Pela reação silenciosa de todos na ceia, ela tinha razão.  Sorrimos discretamente e tentamos mudar de assunto.

A explicação é a seguinte: Débora aceitou a solicitação de amizade e conheceu uma pessoa com o nome e foto do Roberto Carlos e desde então começou  a trocar mensagens e carinhos.  Ficaram íntimos, falavam de suas vidas e da angústia e solidão do sucesso.  ”É ele mesmo” afirmou.  Sim, todos concordamos,.  “com maluco não se discute”, sussurrou uma amiga da família, sentada ao meu lado na mesa. Olhei para Débora com carinho. Era bonita aquela inocência, mas também perigosa em um mundo cheio de fraudes e golpes.

Preocupado e curioso, avancei nos questionamentos ”E vocês não marcaram ainda um encontro?“ Débora me olhou com indiferença. ”Claro que não…ele é um homem muito ocupado”.  A frase fechou o jantar e ampliou o clima de que algo muito engraçado estava acontecendo naquela mesa.

Roberto Carlos – ela disse – tem obsessão pelas cores branco e azul, paixão por flores, gosta de conversar com as plantas, tomar banho só com sabonete de glicerina, não usa perfume, não pronuncia as palavras mal e azar, esquece o número 13 e odeia (também) as cores preto e roxo – dizia, como mantra.

Na verdade, eu descobriria depois que o texto era integralmente a cópia do que constava no perfil oficial do Rei.  Mas, para ela, representava a garantia de que havia se tornado amiga íntima dele. Os dois conversavam até altas horas via mensagem, mas nunca por telefone –  o Rei é avesso à tecnologia e entrou para as redes sociais para fazer novos amigos.  Vive isolado em sua mansão na Urca, aos pés do Pão de Açúcar. É rei, mas não tem rainha.  E Débora, aos 65 anos sonha em ocupar esse trono.

No meio da ceia, ela interrompe a garfada e me pergunta se pode usar o computador: ”aposto que ele vai me perguntar se estou assistindo o especial de Natal”. Débora corre para a sala, liga a TV e se espalha no sofá.  Minha mãe com um misto de inveja e dúvida questiona ”Por que você não está lá? Não foi convidada?” “Não tenho roupa pra essas coisas”, respondeu.

A doçura de certas pessoas não merece a verdade – ou talvez elas não as queiram. Ela é amiga de alguém que também deve viver se imaginando uma outra pessoa. Não há diferença para as tardes nas quais ela perdia deitada na cama olhando as fotos da revista Manchete, escutando o “Good Times”da Rádio 98 – famoso programa de flashback da época. Minha prima, como todos nós, vive suas fantasias, tem seus amigos imaginários. Por que eu questionaria se no fundo tinha inveja da sua inocência?

Ter consciência da realidade nem sempre é algo que nos alivia – pelo contrário, é um peso imenso saber que atrás de telas de computadores não existe nosso sonho e amor verdadeiro.

Débora não tirou os olhos da TV naquela noite. A família seguiu seu curso de todas famílias e com o desaparecimento dos mais velhos, nunca mais se reuniu. Antes de dormir, uma nova mensagem do Rei. E ela dormiu em paz, abraçada a uma almofada, com os versos na cabeça “Tudo nela é bonito/Tudo nela é verdade/ E com ela eu acredito… Na felicidade.”