CRÔNICA

 

 

Na biblioteca da pequena cidade de Kearney, procurei pela palavra “Bergen” – vi que era uma variação histórica da palavra norueguesa Bjørgvin, uma pequena localidade na costa oeste do país.

Foi mera curiosidade, mas fiz questão de anotar em minha agenda porque esse seria meu primeiro endereço, primeiro apartamento pago com meu trabalho, já não mais com economias vindas do Brasil. Pode parecer tolo, mas cada conquista de um imigrante – quando passamos do quarto alugado a nosso apartamento, conseguimos um emprego e recebemos nosso primeiro pagamento, abrimos nossa primeira conta corrente em um banco, ou tiramos um documento qualquer – são marcos iniciais de uma nova vida. Imigrar é nascer de novo e repetir, muitas vezes depois dos trinta, experiências que já vivemos na transição da adolescência à vida adulta.

Uma das novas sensações dessa experiência ao se reestabelecer em outro país é receber correspondência. Nesse caso, ver seu nome em um endereço como comprovante de sua nova vida. Por isso escrevi com prazer, no caderninho: Bergen Avenue. Pronto. Eu vivo aqui.

Bergen era uma avenida diferente, uma colina que em seu topo nos dava uma visão direta ao World Trade Center. Foi a primeira coisa que relatei aos amigos, nos primeiros e–mails. O pequeno apartamento era na verdade um sótão adaptado e eu tinha que subir duas etapas de escadas para chegar até lá. O aquecimento nem sempre funcionava e as chapas metálicas do teto converteram o lugar em um freezer nas noites mais frias. Assim que viramos a esquina estavam lá no final, no horizonte, Manhattan e as imponentes torres.

Depois de ter um endereço, o próximo, o esperado próximo passo é receber correspondências. Como a internet ainda engatinhava, os e-mails eram muito pouco acessados, as cartas ainda eram a principal fonte de comunicação. Fiz questão de escrever uma e enviar um postal a Dona Arlete, minha mãe, mostrando que seu filho agora já não mais alugava quartos na casa de estranhos. Eu tinha um código postal e uma casa, como a dos filmes da sessão da tarde.

A casa tinha três andares, branca, com jardim florido e as escadas eram acarpetadas para não gerar ruídos. Na entrada, um lugar para colocar casacos, chapéus e uma mesa onde a correspondência era posta para que os três inquilinos pudessem organizá-las. Na parede aveludada em vermelho escuro, fotos antigas e um relógio de madeira.

Achei estranho que no primeiro e segundo andar ninguém estivesse morando. O aluguel era muito barato – e esse foi um dos motivos que me fez sair de Nova Iorque e ir até aquela pequena cidade, que tinha uma visão de Manhattan, mas ficava em outro estado.

Estava muito ansioso para receber correspondência e todo dia chegava do trabalho com a expectativa de finalmente ver meu nome naquele endereço. Eu havia enviado cartas a dezenas de lugares na esperança que me respondessem: Escritórios de turismo, clubes de leitura, tudo. Todos os dias chegavam cartas e revistas para somente um nome: Clara de la Hera. Eram dezenas de cartas, revistas e cupons. Eu entrava, olhava carta por carta, subia as escadas e no outro dia toda correspondência havia sumido. No começo achei estranho, já que estava sozinho na casa e o senhorio morava longe.

Na terceira semana, sem nenhuma correspondência e ainda percebendo o desaparecimento diário de todas as cartas e revistas, decidi levar para meu apartamento todo o material e pensei que em algum momento o proprietário ou a própria Clara viesse solicitar. Deixei um bilhete explicando, mas nada mudou. As cartas e revistas chegavam, eu invejava Clara, recolhia o material e no final, ninguém pedia nada. Coloquei uma cadeira na sala onde toda correspondência e revista foi se acumulando. “Uma hora eles vão pedir” – imaginei.

Comecei a ler as revistas: Clara gostava de National Geographic, Readers Digests e revistas sobre decoração de casas de campo. Ela assinava também a Time – que me proporcionou várias tardes de leitura. A misteriosa Clara era também assinante de tantas publicações e cartas que comecei a ficar preocupado. Afinal quem era essa mulher? Por que ninguém vinha reclamar as cartas? Quem era a pessoa que coletava a correspondência, provavelmente no meio da madrugada?

Nosso Google da época chamava-se biblioteca. Fui até a mais próxima, fiz meu cartão de morador local e fui até o setor de periódicos. Lá havia também listas telefônicas e jornais locais. Antes das digitalizações, os jornais eram fotografados e arquivados em rolos de negativos, microfilmes. O pesquisador pegava um rolo e colocava em um pequeno projetor e como se fosse a tela de um computador podíamos ver as páginas. Não havia indexação, como pesquisar por palavras, somente por datas e assim ver a reprodução da edição impressa. Era um trabalho de pesquisa que consumia horas e dias.

A pequena cidade de Kearny tinha somente um jornal, fundado em 1887. A sede ficava na avenida central, não muito longe do prédio da biblioteca. Comecei a navegar pelas páginas aleatoriamente. Pedi os rolos para as máquinas ampliadoras para leitura de microfilmes, comecei minha pesquisa para ver se encontrava algum indício de Clara. Por sorte – ou azar – me deparei com seu nome em um obituário de apenas dois meses atrás. Já estava quase no final do rolo do filme quando a página passou pelos meus olhos. Clara de la Hera, moradora da Bergen Avenue, missa de sétimo dia.

Voltei para casa engolindo seco. Tinha em minha posse um amontoado de cartas e revistas de alguém que havia morrido. Estava morando na casa de alguém que recentemente havia falecido – em circunstâncias que eu também não sabia. Há semanas o senhorio não aparecia, as cartas de Clara se deixadas na entrada, desaparecem. Todos os componentes típicos de histórias de Agatha Christie, minhas favoritas na infância: a casa vitoriana, a pequena cidade, um nome sem corpo e um estrangeiro. Resolver esse mistério passou a ser meu objetivo nos dias seguintes.

A primeira coisa a resolver seria descobrir quem estaria recolhendo a correspondência de Clara – e por que fazia isso sem que ninguém percebesse. Também minhas noites na casa ficaram cercadas de medo. Como Clara havia morrido? Meu primeiro endereço seria marcado para sempre como uma história de suspense e terror? No sábado seguinte decidi não recolher as cartas e ficar na janela esperando a pessoa que iria lá em busca da correspondência.

Coloquei o relógio para despertar as cinco e fiquei observando a rua escura. As seis, ainda amanhecendo um vulto passou pelo poste de luz e vi que entrou na casa. Desci rapidamente as escadas e me deparei com uma mulher alta, de capuz e mochila.

Buenos días – me disse a mulher, ao recolher na mesa a correspondência, colocando-a na mochila.

Essas cartas são para uma ex-inquilina, você mora aqui ? perguntei em espanhol. Ela retirou o capuz e estendeu a mão – muito prazer, Clara.

Nesse momento gelei. Ela percebeu meu susto.

– Antes que você pense que eu sou um fantasma. Eu explico. Você é o Brasileiro, novo inquilino? Já me falaram de você.

Respondi positivamente ainda com o corpo rígido e com um frio que subia pela espinha.

Clara de la Hera estava viva, muito viva.

Ela me disse que provavelmente o senhorio tenha falado sobre seu caso – mas como disse que não sabia de nada, resolveu me contar o “arranjo”. Clara era vítima de violência doméstica e em comum acordo com o senhorio decidiu forjar seu desaparecimento – e notícia de morte – para despistar um namorado que a perseguia. Ela havia se mudado para North Arlington, uma cidade próxima e ficado com a chave da portaria para poder recolher suas cartas, que fazia com certa frequência. Até minha chegada.

Escolhia as manhãs para não ser vista na vizinhança.

Suspirei com alívio. Minha casa da Bergen Avenue não era mal assombrada. Era apenas mais um registro de uma relação que terminou mal. Como tantas outras. Clara era uma pessoa incrível e descobri isso pelo tipo de cartas e revistas que ela recebia. Combinei de reunir tudo que chegasse e levar para ela pessoalmente. Assim e por meses era a desculpa para nosso café em Manhattan, onde ambos trabalhávamos. Fomos interrompidos pelo onze de setembro que paralisou nossas vidas, destruiu nossos empregos e nos jogou para longe. Nos comunicamos nos anos seguintes e sei que ela se casou novamente, tem dois filhos e vive em uma pequena cidade em New Hampshire.

Quase 20 anos depois recebi um email de um sistema de sorteio de moradias populares que havia me inscrito. Fiquei feliz por fugir dos altos aluguéis de Nova Iorque e fui na construtora ver onde ficaria meu novo apartamento – Bergen avenue – dessa vez no Bronx.

Lembrei de Clara e como ela vai rir disso tudo. O nome da pequena cidadezinha na Noruega, muito popular na América, voltou a me rondar. Dessa vez, sem mistérios, sem suspense.