CRÔNICA

 

 

Maria tomava seu sorvete de creme, sem conservantes, puro, feito com leite das vacas que pastam em seu terreno. Jovem, magra e alta, parece olhar o mundo sem curiosidade Um amontoado de abóboras no portão e suas irmãs e primos são testemunhas daquele dia tranquilo em um caminho cheio de colinas da Pennsylvania, onde as estradas fogem dos rios. Ela e todos  no vilarejo vestem preto, usam carroças e evitam a todo custo contato com a nossa civilização, murmuram palavras de um dialeto quase extinto em alemão. Eu estou parado diante de sua casa, branca, na beira da estrada.

Maria se assustou comigo quando me aproximei pedindo uma foto. Tinha olhos grandes, amendoados e uma touca branca que cobria os cabelos. Queria registar aquela cena, quase uma pintura do século dezenove. Os Amish, como Maria, tentam a todo custo fugir das fotos, “roubam a alma” e também são sinais de vaidade. Ela foi criada sem nenhuma tecnologia, ao contrário de mim que sempre fui cercado de tecnologia e eletrônicos. Procuro no yahoo no meu Blackberry – naquela época meu serviço de busca preferido e meu smartphone mais avançado: “Amish é um grupo religioso cristão anabatista baseado nos Estados Unidos e Canadá. São conhecidos por seus costumes ultraconservadores, como o uso restrito de equipamentos eletrônicos, inclusive telefones e automóveis”

Isso existe? Me perguntei. Conseguiria alguém ou alguma sociedade hoje em dia não ser mapeado, observado e estudado pelo mercado para descobrir seus hábitos de consumo?

Ah sim, Maria não tem noção do que esse tal de yahoo tem a me oferecer. Ela não trocaria sua vida tranquila isolada do mundo por um celular, não vê nenhum valor no meu mundo, mas as vezes olha com curiosidade juvenil para a minha mão, que segura essa caixinha mágica. Não há nenhum ruído além de nossas vozes, nem música vinda de TVs ou rádios.  A noite se aproxima e não há energia elétrica. Olho com atenção as roupas pretas, golas com detalhes em um branco encardido. Todos parecem surpresos com a minha presença. A maioria dos turistas passa pela estrada em direção ao mercado na cidade próxima, Lancaster. Lá os grupos da vila levam seu artesanato, em carroças, carregadas também de mel, doce de leite, abóboras decoradas e velas de todos os cheiros, mas em especial de canela com morango.

O céu começa a escurecer e eu, que vagava em uma estrada, penso em me abrigar no estábulo.  Nunca me permitiriam entrar em suas casas.  De onde estava via as montanhas baixas, os pastos.

Estou perdido e aquela fazenda Amish é o único lugar que me protege do temporal.  Duas horas antes, Emerson, um amigo caminhoneiro me deixou em um posto de gasolina. A ideia foi minha, iria de carona até uma cidade distante e voltaria de trem ou ônibus. A aventura seria um dia de caminhoneiro, saber como seria viver na estrada.

Estávamos no final dos anos 90, e eu recém chegado ao país, curioso para conhecer o coração da América do Norte, a vida nas pequenas cidades.  Eu era ainda muito mal informado sobre por onde havia transporte público. A percepção que tinha, provavelmente influenciado pelos filmes, era que toda cidade nos Estados Unidos teria alguma estrutura, uma estação de trem ou uma parada de ônibus.  Esse dia aprendi que até mesmo uma das regiões mais ricas do país, há lugares isolados, e nesse caso, pela fé.  Descobri postes de madeira tortos, linhas de eletricidade frouxas, brincando ao vento, quase no chão.  Há também casas isoladas, espalhando com sua chaminé, cheiro de lenha queimada e café.

Emerson me deixou no posto de gasolina na beira de estrada, depois de quatro horas de viagem.  Saímos de Kearney, uma pequena cidade de Nova Jersey, integrada a região metropolitana de Nova Iorque. Lá foi o ponto de partida para muitas histórias. Ele ainda perguntou ao me deixar no posto de gasolina na estrada –  “tem certeza”?

Eu disse que sim, animado com a aventura, vestindo um boné e uma mochila: mapas, um celular, pasta de dente e uma barra de chocolate.  Vi uma pequena elevação, uma igreja ao longe e fazendas.  Que lugar adorável para explorar e conhecer, não é?  – perguntei a ele.

“Invejo sua liberdade”, disse o amigo caminhoneiro, pai de dois meninos e que precisava voltar para casa depois do trabalho.  A liberdade tem seu preço e seus riscos. Tem sua beleza e sua solidão.

Solidão.  Aqueles campos desertos no fim da tarde me deram uma imensa sensação de estar sozinho no mundo. Sempre achei que todos nós, humanos, somos sozinhos. De alguma maneira, de alguma forma, vivemos coisas que não podemos compartilhar.  Acho que por isso escrevemos – para ficar menos só em meio a tanto.

Maria interrompeu minha filosofia e meus planos.

Ela sorriu ao me dizer que o pequeno vilarejo não tinha estação de trem. E ônibus, o próximo, só aos domingos.  Não somente descobria ali um país desconectado com o que eu idealizava, mas dentro dele uma sociedade que vivia como meus bisavós. Sem querer estava vivendo uma experiência de isolamento social por uma tarde – coisa que eles viveram a vida toda.  Maria nunca viu um jogo no Maracanã, como eu.  Ela também não viu um réveillon em Copacabana, mas com certeza eu também nunca provei do seu sorvete de creme, que derrete na boca, com leite de vacas que ela ordenha e conhece por nomes.

Em poucas horas transitava da maior metrópole do mundo para uma sociedade isolada, onde as pessoas vestiam preto, usavam cabelos longos e chapéus diferentes, como nos filmes sobre a revolução americana.  Pausa para consulta no yahoo ” O movimento amish começou em 1693″  –  volto a olhar ao redor : Até aquele momento, nada havia mudado para eles. Com em um túnel do tempo, estava sentado em um estábulo, olhando para um passado, só visto em filmes e livros de história.

Maria sorri de novo. Quer comprar nosso sorvete?  A família tem um pequeno mercado ao lado da casa, na rodovia.  Lá encontro queijo, iogurte, gelatinas, algum artesanato.  Comprei seu sorvete por três dólares: como eu imaginava, uma experiência sensorial completa.  O cheiro de hortelã, palha e doce de abóbora estão em todo lugar. Posso também tocar a madeira da porta dos estábulos, feitas pelo avô da família.

Sem hotel, sem ter como voltar e ficar, com um céu anunciando mais uma chuva, comecei a imaginar a noite com as vacas no estábulo.  O Yahoo me dá mais informações. O fundamentalismo dos Amish as vezes nos surpreende pela modernidade de seu respeito ao ser humano: o conceito de batismo de crianças é totalmente diferente do nosso, cristão dos novos tempos.  Por acreditar que este sacramento deve ser limitado àqueles indivíduos com idade e maturidade suficiente para um sincero compromisso com os deveres religiosos, somente na idade adulta eles confirmam sua fé.

Decido que o estábulo não era o melhor lugar para dormir em uma noite de chuva e resolvi tentar contato com meu amigo para saber onde ele estava e como eu poderia voltar – Emerson já estava em casa e a única coisa que poderia fazer era se comunicar pelo seu rádio amador do caminhão com a rede de portugueses que usavam a mesma rota.

Fui para a estrada e sob uma chuva ainda fina embarquei em um caminhão gigantesco, branco, que trazia fertilizantes. Precisei me esforçar para subir os degraus que me levaram a cabine, onde um senhor chamado Danilo, de setúbal, estendeu sua mão e me levou de volta a Newark.  No caminho fui contando minha aventura, falando sobre o sabor do sorvete e sobre Maria.  Antes de partir ela acenou na varanda da casa. Seus primos e irmãos estavam lá brincando, sem a menor ideia que viviam em um mundo diferente do meu.

Maria e sua família viraram apenas anotações de minha agenda. Mais de dez anos depois fui ao mercado de lancaster com amigos e meus olhos procuraram pela família. Todos pareciam muito parecidos – e aposto que para eles, eu também era similar a todos curiosos que passavam por suas vidas, roubando fotos, deixando o sorvete derreter no canto da boca, deliciando fragmentos do isolamento que eles vivem.

Pra mim foi mais que uma experiência cultural. A simplicidade de quem vive sem nada do que eu considero essencial me espantou e me fez perceber que eu não era tão livre como pensava.  Hoje sou observado por milhares de olhos, dezenas de corporações sabem o que eu consumo e desejo. Meu smartphone se tornou uma coleira digital que registra tudo que faço. Emerson, meu amigo caminhoneiro não precisará afinal invejar a minha liberdade. Eu não sou livre como imaginava.

Amish, Maria, sim.