OLHARES

 

 

“Devia ser proibido
Estar do lado de cá
Enquanto a lembrança voa
Reviver, ter que lembrar
E calar por mais que doa
Chorar, não mais respirar (ar)
Dizer adeus, ir embora
Você partir e ficar
Pra outra vida, outra hora
Devia ser proibido…”
(Devia ser Proibido — Itamar Assumpção)

As paredes vazias da sala viram uma tela de cinema, e nos vemos perdidos olhando passar filmes, especulando sobre o que estaríamos fazendo se não tivéssemos medo de morrer, ou de levar a morte aos nossos mais próximos. O equilíbrio entre o amor, a razão e a necessidade. Essa lógica existe para quem tem parede e imagina suas lembranças como um filme, pois já foi alguma vez “sonhar no cinema”. E para quem ainda tem os seus próximos.

Agora nos aglomeramos à distância e os abraços e beijos se manifestam em emojis personalizados. Afetos transcritos em bytes & pixels. Matando a saudade em telas de led.

Saudade é uma palavra única e tida como existente apenas na língua portuguesa, essa língua de origem latina, pertencente ao país que se lançou nas navegações, protagonizando a colonização que incluiu fortes rupturas em povos e culturas para a exploração de riquezas. Saudade não têm uma tradução exata, mas sua origem apontada para várias memórias de outras línguas e sentimentos que a compõem. Saudade é, por si só, uma diáspora em letras. Alguns afirmam que Sawad em árabe arcaico, seria negro, não no sentido de tom da pele, mas do sangue pisado no coração ou em outros órgãos doloridos. Também ao latim solitatem, que significa solidão. Soidade, do galego, remete à saúde. Misturando 2 ou 3 desses sentidos, vemos que o corpo sofre com esse sentimento que chamamos de saudade.

Trazendo para a dimensão da diáspora africana, após o sequestro de pessoas de seus lares para trabalho forçado num “mundo novo”, o banzo, que remete, em quimbundo, a mbanza, ou seja, aldeia, traz essa dimensão nostálgica do lar, além-mar. É uma ponte invisível e melancólica que dói tanto quanto toda a violência física e psicológica cometida pelos colonizadores nas Américas, e seus herdeiros, que a perpetuam nos tempos atuais.

Um elemento que, para os povos africanos, fugindo da opressão e da dor e buscando reconstituir a sua identidade enquanto povo, distante da identidade nacional imposta, foram em outros tempos, os Quilombos.

Kabenguele Munanga cita que kilombo pode ser melhor explicado por sua origem linguística umbundu, onde ocilombo se refere ao fluxo de sangue do pênis circuncidado e ulombo seria o remédio para o sangramento durante a circuncisão. Sendo assim, essa raiz “lombo”, do kilombo tem um vínculo com o ritual de iniciação na busca da assimilação com o outro e de, no contexto de luta, alcançar uma invulnerabilidade. E o sangue continua presente seja na saudade, ou na aproximação ao semelhante para matar o banzo.

Clementino Jr. e as mulheres que compõem o quilombo que é sua família e seu corpo: Izabela, Chica (Francisca) e Christina. Foto Clementino Jr., acervo pessoal

O aquilombamento alivia a partir da união desse povo, discriminado por sua cor, e de uma diversidade de origens na terra-mãe. Todas as dores a partir do afeto e da empatia daqueles cuja identidade se reinventa no tom da pele e na compreensão do banzo, não se manifesta presencialmente na sociedade desde março de 2020, de maneira ampla, por dois motivos: as pessoas pretas estão na faixa estatística das maiores vítimas da pandemia, e suas atividades familiares e culturais, das de matriz africana às cristãs, são as que mais aglomeram as pessoas. Por isso, não retornarão a uma dita normalidade tão cedo. Muitas dessas pessoas ainda se encontram abaixo da linha de pobreza, então, assim como não conseguem acesso às telinhas para se comunicar com os seus círculos de amizade e família, deixam o outro lado sem notícias.

Me lembro de um trecho da poesia “Transgressão”, de Maria Beatriz Nascimento:

“No quilombo onde já aconteceu
Em algum tempo da história
Que na memória feneceu
Jamais foi contado
Pois lá era a mesma gente
E o país urgentemente
Apagou da mente
A verdade que passou
Mas não é passado é presente
Pra que repetição?
necessário que abafes
O ruído das sirenes
Que perturbam o ambiente
Dividindo os homens
Entre bons e maus
Entre nós e eles
Entre vivos e mortos.”

Não estar junto, em função do isolamento social, amplia a dimensão da saudade. E por vezes o ritmo do que achamos ser o cotidiano normal já nos distancia de quem, ou do que, sentimos saudade. Não priorizamos o que nos é caro quando cumprimos demandas que nos mantém “quites” com o sistema, mas que não nos completam no que mais nos traz conforto ou prazer. O medo da morte ou de transmitir a morte, quando nem sabemos se estamos infectados pelo “inimigo invisível”, parece com um conto de Kafka. Os meses passam e as tentativas de retorno a uma normalidade indesejável nos mantém inseguros. Os privilégios de alguns tentam se impor à segurança e conforto dos demais.

Talvez, essa solidão e esse isolamento sejam necessários para pensarmos que a volta à normalidade é impossível, pois é normalidade para quem? Onde há saudade há dor, há falta, algo não está completo. A resiliência não se manifesta. E, quando a saudade vem da passagem de alguém querido, em um panorama onde não é facultativo a todos uma despedida, pensando no contexto do vírus, se pensa muito sobre o tempo não aproveitado para criar as boas memórias que se tornam parte de nosso aprendizado.

A saudade faz parte do que as diásporas plantaram nos corpos de nossos ancestrais, essa memória corporal do que nos constitui e nos marca a cada geração. Acredito que essa pausa é o momento de entendermos que o nosso corpo é um quilombo, conectado a outros quilombos, e que, nos preservando, nos ampliaremos amanhã pelos abraços, cheiros, beijos e pelas palavras e cafunés.

Já sentindo saudade de ouvir ao vivo Dona Chica dizer com um jeito que só ela diz: “Meu Filho, como você vai?”.

Ouvirei e me sentirei completo.

Foto 2 -Clementino Jr. e as mulheres que compõem o quilombo que é sua família e seu corpo: Izabela, Chica (Francisca) e Christina.

Esse texto contou mais uma vez com a contribuição na revisão de Tayná Arruda, e é dedicado a todas as pessoas que deixam boas lembranças no coração, com sangue correndo na “normalidade”.