CRÔNICA

 

 

A esquina da Rue de Clignancourt com o Boulevard Rochechouart, em Paris, sempre foi um cruzamento boêmio. Não está  longe do Moulin Rouge, de prostíbulos e lojas de produtos eróticos. Durante o dia é um ponto de encontro de jovens muçulmanos e alguns em busca da venda de relógios e tênis importados. Foi lá que comecei a perceber uma coisa muito interessante sobre as cidades que passei. Elas, todas, possuem aromas únicos. Mais do que cores e sons, elas me fazem viajar pela minha própria história. Um túnel do tempo e da memória.

Um jovem árabe vendendo incensos passou por mim e o cheiro de almíscar me levou a uma noite em um baile no subúrbio do Rio. Por segundos, veio uma lembrança mágica, cercada de outras sensações: a soul music, a calça acetinada fazendo barulho ao andar, os sorrisos dos amigos na entrada do baile. Lembrei da loção de Alfazema, que passava após o banho, queimado de praia do dia anterior, com o pescoço cheio de polvilho antisséptico Granado, o cheiro da pomada minâncora, do leite de rosas da minha avó, que entrava pela janela nas tardes de domingo.

Cada cidade  e sua época tem um cheiro predominante e ao longo da história vários relatos nos deixaram saber desses aromas mágicos: a pimenta-do-reino, a noz-moscada, o cardamomo, canela, cravo, cominho, gengibre são os que predominam na Índia. Já os trópicos registram na literatura o cheiro das jacas, bananas, flores gigantescas. As montanhas frias, os pinhais, o eucalipto.

Cada história de vida, um cheiro, um aroma que nos faz lembrar de onde passamos, mais até do que as fotografias e anotações que fazemos. Tudo vai se conectando, música, cor e textura das roupas, lençóis e toalhas, cheiro do couro da bolsa.

Resolvi mergulhar minha memória nos aromas: a infância suburbana carioca tinha cheiro de cimento molhado, aquele vapor da chuva após o tórrido dia, de calçadas mal cuidadas com capim, o cheiro dos trilhos dos trens, o vagão com perfume barato. As areias brancas das praias da minha infância não tinham cheiro, somente ruído. Eram acetinadas e faziam um som já descrito por Tom Jobim..era ” cuim cuim” ao mergulhar meus pés. Tinha muito tatuí, mas esses não tinham cheiro e nem som, tinham só cor de areia. Espere: Às vezes vinha um aroma da loção de bronzear, à noite, da maresia. Maizena depois da praia, amenizando a queimadura. Espuma de coca cola nos jogos no Maracanã, bala de hortelã, aniz.

Cores, sons e ruídos são os que marcam nossas viagens. É bem verdade que o mundo globalizado nos tirou muito disso. Hoje shoppings centers cheiram a shopping centers e podem estar em qualquer lugar do mundo. Até o produto de limpeza que usam no banheiro parece ser o mesmo. O cheiro da lavanda de “Provence”está na porta da loja de sabonetes e o som da praça da alimentação pode ser o rock da Filadélfia ou de Miami, tanto faz, ninguém percebe a diferença. É preciso muita concentração e atenção para perceber as diferenças das cidades, no ocidente pelo menos. As cidades modernas são assépticas, mas, suas periferias, exalam a temperos e perfumes baratos, vendidos por ambulantes.

Meu nariz urbano não sabe diferenciar aromas de flores ou das feiras e suas ervas. Estou mais próximo da diferença entre tijolos e cimentos. Como cresci perto de ferrovia e gosto de trens, comecei a perceber que cada cidade tem um metrô que cheira de forma diferente. Ao contrário dos shoppings, os metrôs não foram (ainda) globalizados nesse item.  Mesmo os novos vagões chineses, claros como o dia, não tiraram o charme das estações mais antigas e cada cidade tem sua história cravada em suas entranhas e trilhos. Além da graxa e do óleo, cada trilho tem uma madeira diferente que reage aos líquidos de forma diferente.

As estações de metrô de Nova York têm cheiro de raticida e pólvora. Buenos Aires, borracha queimada. Boston, a madeira de lei molhada. No verão, as escadas que nos levam às estações sopram o cheiro das plataformas em nossos rostos, no inverno somos nós que levamos o cheiro molhado ao interior das estações, carregados por casacos e naftalinas. E por aí vamos anotando os cheiros. Paris se parece mais com Buenos Aires, Washington lembra o metrô de São Paulo.

San Francisco não cheira a mar, mas em compensação o bonde conservado dos anos 50 nos leva no tempo a uma viagem ao passado, com cheiro de chiclete e milk shake. As montanhas do Colorado me trazem o vento frio, filtrado pelas altas árvores e pinheiros, cheiro de madeira verde, crua.  Se respiro fundo, posso lembrar de Woodstock, de lenha sendo queimada, de fumaça saindo de uma chaminé.  Quando chegar o Natal será o cheiro de canela com maçã verde.

Na volta para a serra, em Teresópolis,  depois de tantas viagens, sentia o cheiro das plantas e da vegetação ao subir a estrada. Nos dias de verão, a chuva levanta o aroma da vegetação da Floresta tropical de altitude. No Rio não há como Paris, flores nas praças, tudo é verde. E cheira a mato molhado e a barro.  Mas o cheiro – bom ou ruim – não deixa de estar presente. O centro histórico do Rio de Janeiro cheira a urina e borracha, a capim limão, a bagaço de cana, triturado nas máquinas nas esquinas ao lado do frango que assa e exala gordura.  O cheiro de nossa casa  – em qualquer cidade – é mais difícil de perceber, pois já nos acostumamos. Deve ser o aroma do perfume que gostamos, do sabão em pó para as roupas de cama. São perfumes nada exóticos na maioria das vezes. Nosso cheiro se confunde com as loções e cremes.

Viajar não é só mudar de paisagem. É mudar de aroma. É guardar na memória nossa história registrada por meio do olfato. Toda nossa vida é muito mais que um emaranhado de imagens e sons, de lágrimas e de sorrisos. Podemos traçar toda nossa vida, do cheiro da fralda e do plástico da mamadeira, ao vestido de noiva, ao primeiro terno do trabalho. As cidades vão nos impregnando de aromas, que roubamos das coisas. Saber diferenciar lugares pelo aroma é o exercício afetivo que nos torna humanos.