RELATO

 

 

Por Alfredo Soares*

Eu nem mesmo sabia direito meu nome. Há tanto tempo caminhava  pela vida sem direção. Numa porta pedia café, na outra implorava pão. Sandálias de couro nos pés a machucar e o caminho pra caminhar. Seguia beirando o rio pra me banhar e tomar água de concha com a mão. Via a hora observando em que altura estava o sol. Quando ele se punha procurava um canto pra me acomodar. Não tinha medo de nada. Era meio bicho também. Se via um animal queria logo caçar. Se fosse gente tinha receio. Preferia ficar sozinho. Quando muito observava suas esquisitices. Sozinho tinha o tempo comigo. Meus pertences levava nas costas. Dormia com as estrelas vendo as constelações. Seguia as três marias, o Cruzeiro do sul. Aprendi na escola ainda criança. Mas cresci. Filho temporão, nasci com irmãos bem mais velhos. Não tive eles como amigos. Pareciam meus pais. Era tanta pressão e afazeres que numa tarde resolvi ir embora. Sai do sul em direção ao norte sem me despedir de ninguém.  A estrada de chão ia dar ao longe. Eu nem me importava onde. Fui sem perguntar. Minha mãe já tinha ido pro céu, meu pai foi primeiro, meus irmãos não iam reparar. Fui. Pelo caminho bebia pra aquecer a noite e esquecer o que passava durante o dia. Quanto mais caminhava mais entendia aquilo que me acometera.

Me afastando do passado me aproximei de mim, fui ficando corajoso sem olhar pra trás. Em frente seguia irresponsável e destemido. Subida, descida, retas e mais retas. Poeira nos olhos e tropeiros pelos caminho. Gente que levava boiada, mulher com trouxa nas costas, homem capinando lavoura, carro de boi a gemer. Fazendas com suas cercas de arame farpado e o silêncio cortado pelo vento que ora prenunciava chuva, noutras mosquitos que perturbariam  o repouso. As casas que surgiam eram poucas, mas nelas sempre encontrei acolhida. Até que numa tarde de folhas caindo ao chão avistei Maria na janela. Bela na cor de jambo. Ela sorriu quando gritei da porteira. Por um momento sumiu, pra depois acenar com a mão autorizando a minha entrada.

Quando cheguei na frente da escada que dava pra porta velha com tinta verde desgastada, quem me recebeu foi sua mãe, com um dorso na cabeça e um olhar gentil e desconfiado. Tentei espichar os olhos pra ver aquela morena do sorriso sestroso, mas dona Romana, jogava o corpo de uma lado pro outro como se antevisse algo que estava por acontecer. Perguntei se não tinha um pedaço de broa e um gole de café pra me dar. Estendi a caneca de ágata roída na beirada pra’quela senhora franzina. Ela pegou, e sem me deixar entrar no casebre de chão batido, se dirigiu para o interior da mesma chamando a filha.

– Maria! Maria! Gritou duas vezes com voz alta como se a casa fosse maior do que três cômodos. Um silêncio reinou por alguns minutos até que quem veio me trazer o café, com broa e tudo, foi a moça de pele de jambo. Fiquei parado enquanto ela falava: – moço, pega, toma seu café. Eu, tomado por tamanha beleza, peguei  e agradeci. Estava tão embestado que não percebi o quanto o café está quente. Tomei um gole e queimei meu céu da boca todo. Ela percebeu e começou a rir. Eu com a boca esfolada também passei a rir do riso dela, que de tão bonito parecia o sol rasgando a nuvem depois de um temporal.

Maria respondia tudo que me atormentava e procurava como resposta. Ela era a cura pra minha alma sem sossego. Acabei de comer e me pus a puxar conversa. Ela era só ouvido pro tanto de história que eu tinha que contar. Aluguei seu ouvido, sem saber como parar.  Como por milagre sua mãe me convidou pra pernoitar por ali. A noite chegaria logo, logo. Aceitei de pronto, sem temer o pai que podia estar por chegar. Foi quando Maria me disse que ele tinha ido embora pra cidade grande atrás de trabalho e não mais voltou. Ela e a mãe cuidavam de umas poucas cabras e da lavoura de aipim. A noite avançou e fui dormir perto do estábulo. Maria era moça e eu não queria me afobar. Noutro dia encontrei as duas ordenhando antes do sol raiar. Imediatamente me pus ajudar. Maria e sua mãe lutavam pra sobreviver, acreditavam em Deus e no milagre divino. Rogavam por dias melhores sem esperar a graça cair do céu. Eu, perdido, precisava de uma família.

O tempo estava passando e minhas pernas já davam sinais de cansaço. No outro dia me assentei ali próximo, num vilarejo a duas léguas do sítio e sempre aparecia pra ajudar. Já não seguia em frente. Ficava num vai e vem diário. Um dia tomei coragem e pedi a mão de Maria. Sua mãe respirou aliviada, não queria ver a filha mal falada, mesmo não tendo vizinhos a avistar. Maria se casou comigo, tivemos oito filhos. Alguns puxaram a mim e se foram pelo caminho. Os que ficaram puxaram a mãe. Eu, nunca mais fui o mesmo. Maria me capturou e me trouxe a paz que ninguém podia me dar. Hoje o sítio produz feijão, milho e tem um lago com muitos peixes.

Dona Romana descansou em paz.  Sabia mais do que todos nós. Maria era sua continuidade nesse chão. Ela logo virou raiz e seus netos, que não chegou a conhecer, frutos da vida que continuará além de mim e Maria. Na frente da casa plantei um pé de jambo. Nessa época do ano ele fica florido. Símbolo do amor que nos acolheu.


* Jornalista, radialista, escritor. Teresopolitano radicalizado em Campos/RJ. Instagram: alfredosoares49
** Pintor, cartunista e ilustrador. Também é professor de desenho. Instagram