Tento esconder minha mágoa atrás de um ceticismo bobo e inútil. Finjo não acreditar nas pesquisas, justifico os frios números com analises sociológicas dignas das piores conversas de boteco. Dizem que a popularidade do responsável direto do morticínio cresce, e muito, especialmente entre a população mais afetada: a mesma gente que desde sempre sofre na pele as consequências do abandono, da fome, do desemprego, a mesma gente que morre de Covid três vezes mais de outras faixas populacionais. A pandemia mostra seus dentes e como um deus mesopotâmico exige sacrifícios humanos e tributos de sangue. Homo Sacer, homem sagrado, na Roma antiga, era denominada a pessoa despojada de todo o direito por ter cometido delitos contra a divindade, e, portanto, disponível para ser morta por qualquer um que desejasse matá-la. Homo Sacer agora é a massa de um povo vencido que oferece voluntariamente a cabeça ao seu carrasco e subindo os degraus do patíbulo aplaude entusiasta. Talvez os seiscentos reais do auxílio façam mesmo toda a diferença. E por seiscentos reais é possível negociar apoio político, consenso eleitoral, alma e dignidade. Mil anos atrás vi os caminhões de cestas básicas na praça da favela. Entre o esgoto, ratos mortos e ratos vivos, meu povo em fila agradecia e abençoava o Odorico Paraguaçu da vez. Ele com amplos gestos, tapinhas nas costas e beijos nas crianças, garantia seu poder. O amor do povo era todo para ele: bandido é na cadeia e comida mais barata na mesa do trabalhador.

A história a seguir não tem nada a ver com isso. Parece que foi ontem, mas aconteceu há muito anos, entre o mês de dezembro e a semana de carnaval de… quando o país parecia enveredar por caminhos mais dignos, parecia. Lá no porão, gemiam os corpos indesejáveis de todas as épocas. A história a seguir fala de um anônimo filho do Brasil, nascido pobre, periférico, negro, um verdadeiro Homo Sacer do nosso tempo, pronto para ser massacrado a qualquer momento, só pelo fato de existir, por viver uma vida fora dos padrões, uma ameaça intolerável. Era como se sua existência, por ser preto, pobre e livre, negasse a imanência do Estado: e pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos… com uma pequena diferença: ele resistiu até o fim.

O pen drive é minha consciência suja. Sei que nas profundezas dos circuitos eletrônicos dormem anos de lembranças, anos de trabalho, saudades, feridas ainda abertas, pessoas que foram embora para nunca mais. Sei que talvez somente o esquecimento é capaz de curar. Sei que não quero esquecer. Edith Moniz, pedagoga, professora “tia de rua”, fundadora do Projeto Lata-ria, a escola itinerante para as crianças sem escola, diz que é necessário contar a história de cada uma delas, não para esculpir palavras no mármore, mas para que o vento as leve, o mais longe possível, até os anjos. Quando a saudade se faz presença viva, não importa quantos anos se passaram.

Para não esquecer.

 

O Caminho, o Sorriso, a Dor

Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor

Os rascunhos se acumulam como rabiscos em confusos pensamentos. Antes de passar a limpo no computador, caneta e papel para pensar melhor, para fazer fluir fisicamente as ideias, para que cada palavra não seja um bit, mas tenha corpo e consistência. Desta vez, porém, é mais difícil.

Queria ser um sambista de primeira, um partideiro, para saber e poder compor as melodias mais lindas e os versos mais tristes, conseguir juntá-los numa maravilhosa canção cantada baixinho e consolar, feito vela no escuro, as trevas da minha alma.

Gostaria de começar contando a tua história, a nossa história, mas a única coisa que vem à cabeça é a imagem do teu pescoço amarrado a uma corda e teu corpo pendurado na grade da cela da prisão. E aquela fria e impassível nota de duas linhas na internet…

Pego o álbum das fotos, quero colocar teu rosto no fundo dessa página: A. M. da Cruz, e quatro simples palavras: Amigo, Filho, Cidadão, Brasileiro.

Amigo, porque tu eras realmente amigo de todos. Moravas na praça desde que fugistes de casa aos nove anos, quando o barraco em chamas te deixou aquela marca no rosto, bem ali onde o rato deixara a dele. Amigo sim, porque todo mundo te queria bem. Quantas lembranças, meu Amigo, quantas lembranças! As fotos estão todas aqui, as crianças sentadas escrevendo, aprendendo a ler apoiadas na mureta, a nossa sala de aula, a nossa escola. Nunca te contei daquela reunião na prefeitura quando tiveram que modificar o projeto original da restauração da biblioteca, nunca te contei. O lago e a fonte previstos originalmente, foram substituídos por um simples gramado com a grade de proteção. Estavam com medo que o lago e a fonte se transformassem na tua piscina particular. E tinham toda razão, terias sido o primeiro a mergulhar… . E quando tivestes medo de assinar o teu nome no RG, lembras? E olha que havíamos treinado por dias e mais dias: os primeiros traços trêmulos que, devagar, se transformavam em letras… , querias desistir bem na frente do guichê.., querias voltar a pôr o dedão como os analfabetos…, o medo de não conseguir, a vergonha de fazer feio, de assinar torto… Que nada! Agora seu documento está comigo, já com tudo dentro, diria Chico Buarque, com foto e assinatura, nome, sobrenome e filiação!

Filho: todo ano, tua mãe fazia questão de passar o Natal na praça contigo; era a primeira coisa que me contavas feliz, alegre e orgulhoso: minha mãe esteve aqui. Tua mãe… que não foi avisada, tua mãe que ainda ignora: ninguém lhe disse que o filho dela morreu pendurado pelo pescoço, assassinado na cela da casa de detenção onde estava recluso ilegalmente. Imaginas que um famoso desembargador estava se mobilizando para te tirar dali, faltavam poucos dias para a audiência, mas tu já estavas morto. Casa de detenção: 700 vagas, 1900 os internos, mais que o dobro. Homens transformados em animais. Não sei o que aconteceu, a nota do jornal não diz nada, mas os amigos da praça imaginam os pormenores. Fostes escolhido para morrer: um recado aos outros, uma vingança, linchado e depois enforcado. E tua mãe que nada sabe. Ninguém foi capaz de procurá-la para que pudesse te enterrar, enterrar o filho. Nem a administração pública que te encarcerou e permitiu a tua morte, nem a pastoral carcerária que dá a notícia via internet. E então, tu, Amigo e Filho, serei eu que irei até tua mãe e com ela chorarei o seu pranto, é uma promessa. Que pelo menos possa eu cancelar este último insulto que te fizeram: ser enterrado numa vala comum como indigente. A nota da internet diz “morador de rua”, como se você fosse um vagabundo, um andarilho, como se ninguém soubesse que dormias debaixo da segunda marquise do lado esquerdo, o mesmo endereço há anos, e que ali na praça trabalhavas como guardador de carros e garoto de recado das lojas. Não, meu Amigo, meu Filho, tu eras um grande cidadão que se desdobrava para sobreviver, eras um cidadão do meu País, cidadão de um Estado que te prendeu numa jaula, te linchou e te deixou pendurado na grade até o último suspiro, um Estado que te enterrou como indigente numa caixa de papelão, na cova rasa de um cemitério sem nome. Um Estado que não teve a hombridade de procurar tua mãe.

Cidadão. Foi isto que pensei ontem ao receber o teu cartão de visita. Os amigos da gráfica da praça bolaram a ideia: todo mundo tem um cartão de visita, você também, e junto com o teu nome e o teu endereço estão também os três cachorros inseparáveis que te acompanhavam. O cartão de visita. A escrita que quero na foto: A. M. da Cruz, Amigo, Filho, Cidadão Brasileiro, que levava a Cruz até no nome, como milhões de nós sempre fizeram e continuam fazendo.

Sem mais palavras, sem mais lágrimas, cansado de tanta luta, de tanto trabalho, sem mais sorriso, fico com a minha imensa dor. Um pedaço de mim pendurado na grade ali contigo, sepultado na vala comum, na terra vermelha do meu País.

Adeus, meu amigo, adeus.

O pen drive onde guardo lembranças e saudades, revela o epílogo. Quando o tempo cronológico da sucessão dos eventos não vale mais, tudo se torna um eterno presente, o que já foi, sempre será. Enquanto lá fora a cidade enlouquecia, um punhado de terra vermelha cobria nosso jovem amigo.

 

O silêncio de um dia qualquer

A busca foi rápida o bastante para durar dois meses. Finalmente hoje encontrei o lugar exato, o cemitério, o lote, o tumulo. No geral abandono, jaz o garoto morto pela violência do estado. O meu país mais uma vez demonstrou a implacável capacidade de exterminar os seus filhos mais fracos. Achei o nome dele no registro geral, estava escrito: causa morte “desconhecida”. Por dez dias o cadáver ficou na espera de alguém que fosse reconhecê-lo, alguém que dissesse: eu sei quem é, conheço o nome. Dez dias na câmara frigorífica do Instituto Médico Legal, mais uma vez sozinho, totalmente abandonado. E assim foi sepultado, na cova rasa onde agora o mato toma conta, e a solidão impera. Construí com dois gravetos a cruz, que pelo menos seja sagrada esta pouca terra que te cobre. Uma pequena foto, uma flor, o teu nome.

Agora é só o silêncio de um dia qualquer.
Podem celebrar, irmãos, é carnaval.
Afinal o carnaval é para isso,
celebrar comemorar cantar dançar.
Podem ir em frente a noite inteira
e amanhã também
carregados de cerveja
e tambores cegos ao mal
e surdos aos meus gritos.
Não me chamem
não me convidem
sejam felizes sem mim.

Eu procurei na terra nua
um sinal de um filho meu
um filho que vi ser morto
na solidão da cela escura
povoada de assassinos.
Agora a terra nua do meu país
cobre o grito não ouvido
o desespero nunca consolado.
Chumaços de grama na cova sem nome
e lama ao redor, lama no mundo,
chuva de lama,
lágrimas de lama, as minhas,
que o sangue já se foi.
Escrevi o teu nome na lama, meu filho,
para que a terra saiba de ti,
escrevi o teu nome
sem mais esperança, sem lembrança.
Escrevi o teu nome na minha carne
fiz da grama cruz, fiz da cruz sinal
No fim da rua
somente a dor vazia do esquecimento.

Podem celebrar, irmãos, é carnaval.