A nebulosidade que origina o nome da cidade de Brumadinho ocupa de distintas formas e com variados impactos, também as cidades de Mariana e Itabira.  Tanto as brumas quanto os rios e as pedras poderiam ser fontes de inspirações poéticas. E assim foram, pois se pode encontrar nos poemas de um dos mais potentes poetas de todos os tempos, nuvens, pedras e rios. Mineiro, de Itabira, Drummond já havia escrito o suficiente para contribuir com sentimentos e pensamentos das pessoas para entender que, na vida, o Rio Doce impactava mais que quaisquer brumas. E, como escrito pelo poeta, “O Rio? É doce. A Vale? Amarga”. E era mesmo sua declarada posição favorável à vida e contrária à mineração em curso, impactada ainda mais pela criação da empresa que “não vale”, a Vale do Rio Doce. O poeta não aguentou e, ainda que não tenha deixado de olhar e sentir Itabira, foi ver o Brasil em suas formas físicas por aí.

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira em 1902 e faleceu no Rio de Janeiro em 1987. A Vale do Rio Doce foi fundada em 1942, em Itabira, e até hoje segue minerando por aí. O quanto a empresa Vale já era amarga, desde o início, para o poeta, sua amargura se tornava mais evidente para as pessoas nos anos 2015 e 2019 quando ocorreram rompimentos de barragens que ceifaram a vida das pessoas em Mariana e Brumadinho. O impacto da vida em Minas chegou para todo mundo: deram-se conta de que um vale amargo já tinha sido anunciado pelo poeta muitos anos antes.

O que está em questão, antes de mais nada, é a necessidade mais que urgente de assumir uma posição assertiva e combativa em defesa da vida. E, tratando-se de Brumadinho, sofre-se impacto na água, na mineração e sobretudo nas pessoas que estão nesta segunda Unidade Federativa do Brasil e que nela ainda existem. Mas até quando existirão? Palavras não resolvem nesse caso, o Estado precisa agir criando frestas de humanidade. Sabemos que o Estado seguirá com seu papel e sua finalidade de existência, confirmadamente no capitalismo, mas podem ser criadas frestas de humanidade, frestas públicas, para que as pessoas cuidem e preservem a vida em sua dignidade plena. Ao se juntar ao papel opressor do Estado, a ideologia populista que tomou a formação brasileira, fomentada pelo projeto neocolonial de impérios em disputa, fomenta a necropolítica que explode em todas as dimensões e contra a vida.

Neste momento específico em que a pandemia toma o mundo e em que a política brasileira estende o tapete para que o vírus massacre os mais empobrecidos, estes que fazem existir a vida de todos por meio de seu trabalho, as situações são ainda muito mais doloridas. Escrever para que o Estado brasileiro, e a Vale, ainda que faces de uma mesma “necromoeda”, se façam valer reparando a vida das pessoas que não a perderam com a morte dos corpos, é uma exigência fundamental. Urge, ainda mais, uma ação que precisa se consolidar como alimento de solidariedade e de unidade: os grupos políticos brasileiros comprometidos com a vida precisam dar as mãos unificando uma grande onda e uma potente gira em favor das pessoas em Mariana e Brumadinho.

A multidão de cada local, que se unifica em organizações da sociedade civil, com diferenças e recortes múltiplos, possui um centro de unidade que precisa ser descoberto por todas as pessoas: somos as pessoas que possuem a mercadoria força de trabalho para vender e para sobreviver. Dentro dessa unidade, há diferenças e diversidades de humanidades e há vários direitos humanos a serem defendidos, bordados e conquistados. A vida é mais ampla do que a da humanidade, e seres humanos como nós, que se dispõem à organização, à ação, ao discurso e à fala possuem a tarefa de defender toda a vida existente e senciente, não somente a sapiens, de modo a ampliar, radicalizar e aprofundar a defesa da vida humana e não humana em toda a sua plenitude.

A narrativa dominante sobre as tragédias possui ideologicamente a tarefa de esconder a natureza histórica, social e fundamentalmente econômica delas, dando-lhes o caráter de fatalidade naturalizada. E assim tem sido o véu místico ideológico deste modelo societário: a Natureza, o acaso e a contingência se personificam como sujeitos causais das tragédias e os verdadeiros sujeitos responsáveis por elas se coisificam como objetos de seus efeitos, nesta inversão cotidiana a partir da qual opera a ideologia. Sabemos que nada há de natural nas tragédias em Mariana e Brumadinho: possuem, sim, sujeitos que as fizeram existir e seguem estes sujeitos, num rodízio fantasmagórico, a fazer existir ainda mais tragédias, incluindo as múltiplas tragédias da pandemia. Esses sujeitos são dominantes na economia e, como tais, se apropriaram privadamente da Natureza sobre qual a destruidora mineração sempre ocorreu e segue existindo.

Um basta na destruição da Natureza e da vida é clamado no momento. Tal basta só pode ser feito por sujeitos sociais, esses que são impactados por toda a destruição da natureza e da vida, em todas as suas dimensões, e transformam os seres humanos em objetos e em insetos.

Mas são esses mesmo seres humanos objetificados que são os verdadeiros sujeitos de toda a produção social e que possuem o potencial criativo para transformar a Natureza sem lhe esgotar e para que a transformação do grande COMUM seja apropriado de forma coletiva e solidária. Não há mais tempo para as destruições. Precisamos viver um tempo das reparações, mas, sobretudo, de avanços. Reparar o que a empresa multinacional de mineração chamada Vale fez em 2015 e 2019 é mais do que necessário, é urgente. Mas essa empresa que opera sobre os caminhos e sobre as condições para a morte não o fez sozinha e o Estado precisa ser responsabilizado e compromissado pelos e com os sujeitos humanos que sofrem seus impactos. Somos nós os sujeitos que sofrem os maiores impactos deste modelo estatal e econômico e os mesmos que produzem, pelo trabalho, todas as coisas necessárias à vida planetária, portanto, somos quem possui a força, a potência e as condições para mudar o mundo. Eis o tempo de fazer com que o rio que nos atravessa seja realmente doce e de tirar toda a amargura que condena a humanidade.

Vamos, unificados, realizar uma grande gira de defesa da vida e que faça a solidariedade avançar para que viver seja um ato de criação e não de escravidão, como tem predominado no mundo e principalmente nesta neocolônia chamada Brasil. Vamos seguir, como sujeitos humanos, sociais e políticos solidários, exigir todas as reparações nas cidades de Minas Gerais, para que sejam “cidades gerais” em vidas e não em coisas. E, nessa mesma trilha, potente e criativa, vamos superar as ondas de mortes da pandemia, abraçar toda a periferia que traz o viver espalhado por todo o Brasil e fazer acontecer a dignidade humana em todas as suas dimensões. Vamos ultrapassar fazendo a vitória em favor da grande maioria de pessoas brilhar em nosso Brumário. É hora de fazer a vida valer!