De 1900 a 1995, o consumo de água no planeta cresceu mais de seis vezes, bem mais, que o dobro da taxa de crescimento populacional, e continua crescendo assustadoramente, com a elevação da produção agrícola, industrial e doméstica. Com isso, os recursos, antes abundantes, apesar de mal distribuídos, estão sendo rapidamente esgotados.

O crescimento demográfico e o desenvolvimento da economia fez crescer o consumo a ponto de causar um alto nível de estresse dos recursos hídricos.

O Brasil desponta no cenário global como o país com maior disponibilidade hídrica do planeta e para preservar e garantir às futuras gerações e à atual, o acesso a esse bem tão importante, é necessário uma gestão eficiente dos recursos com a definição de marcos regulatórios regionais e internacionais – envolvendo as bacias dos rios Amazonas, Paraná, Paraguai e Uruguai – que se encontram em territórios estrangeiros.

Não é de hoje que a luz amarela está acesa sobre o setor, devido a complexidade climática, relacionadas a estiagens e secas, principalmente, na região nordeste. No entanto, eu não sei o porquê, mas quando ouvi sobre a aprovação do marco regulatório do saneamento no Senado fui jogado dentro da fatídica reunião de 22 de abril no Palácio do Planalto. Lembram da boiada do ministro do meio ambiente, Ricardo Sales? Ele afirmou que era preciso aproveitar a “oportunidade” que a pandemia do novo corona vírus trouxe para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.

Não é de hoje que as políticas de saneamento no Brasil são um problema de saúde pública e que, nem, os governos de centro-esquerda conseguiram dar jeito, mas traçar planos para o setor, sem um amplo debate sobre o tema, me parece um tanto quanto inoportuno ou, para me fazer entender melhor, oportuno demais, chegando a se confundir com oportunismo de uma boiada passando quando o dono do gado saiu para buscar o novilho perdido no pasto.

Decididamente não dá para tomar decisões deste porte, em plena pandemia e sem envolver toda a sociedade no debate, principalmente, o setor cientifico e as universidades. Não podemos permitir uma discussão somente no campo econômico e governamental, pois já vimos esse filme em outras frentes, como na telecomunicação, transportes – nas suas mais variáveis modalidades-, saúde e outros.

O Congresso Nacional precisa promover um amplo debate sobre o tema, principalmente, sobre as contradições que estão contidas no setor, envolvendo as políticas macro – das grandes cidades com super densidade demográfica -, e as micro políticas – nas cidades pequenas e regiões pouco habitadas.

Desde o ano 2000, com a criação da Agencia Nacional de Águas ( ANA), o Brasil deu um passo importante, no sentido de implementar uma política nacional de recursos hídricos, mas os interesses políticos e econômicos, envolvendo governos e mercado, impedem uma gestão democrática e eficiente no setor.

Quando Willian Shakespeare, em Hamelet, sentenciou a loucura dos poderosos – “A loucura dos grandes precisa ser vigiada”, com certeza estava prevendo, cinco séculos antes, o papel do mercado financeiro e das elites que o financiam e, que sempre se colocam contrários aos esforços mútuos, daqueles que tentam humanamente, estabelecer pactos democráticos sobre temas como mudanças climáticas, uso consciente dos recursos hídricos, saneamento básico como política de saúde e prevenção e tantos outros, que carecem de abordagens mais sensíveis e humanas.

Em 2001, participei junto com dezenas de jornalistas de um ciclo de atualização em jornalismo científico _ Ciência e pobreza no sec XXl _, o que me despertou para o tema e me fez voltar à universidade para uma pós graduação em Gestão de meio ambiente e qualidade de vida. Eu, um mero operário da grande mídia, envolvido nos temas do cotidiano, onde a pressão nos faz cada vez menos observadores do entorno e das contradições sociais que nos cercam, me vi, completamente apaixonado pelas questões ambientais e imbuído do forte propósito de partilhar conhecimento com a parcela da população excluída pela fome, pela sede, pela falta de educação, de saneamento e, principalmente, pela ausência de possibilidade de pensar seus próprios caminhos.

O tempo passou e vinte anos depois, muito pouco ou quase nada foi feito. A alienação promovida pelo poder continua se sobrepondo à verdade e aos fatos.

Pois, que importância tem a escassez de água, de saneamento e as vidas ceifadas por falta de políticas de preservação, diante da necessidade de manutenção da alienação da sociedade e do lucro?

Paraiba do Sul. Foto de Carlos Ramalhete.

Água, a dona da vida

A água e a paz começam nos indivíduos. A humanidade consome menos de 10 por cento das possibilidades hídricas do planeta e, no entanto, mais da metade da população mundial não tem acesso ao recurso. O mapa da água é cheio de contornos e contradições que ficam mais evidentes à medida que diminuímos o nosso campo de observação.

O Brasil, de acordo com a Agencia Nacional das Águas tem a maior bacia hidrográfica do mundo, mas uma boa parte do seu território não possui cobertura de abastecimento de água tratada. Se levarmos em consideração, a deficiência no tratamento do esgoto, é fácil diagnosticar que a saúde do brasileiro começa a se deteriorar na porta dos fundos de cada casa, escola, hospital e empresas do país – pois na maioria deles existe um cano de PVC que joga o esgoto sem tratamento em uma pequena vala, riacho ou nascente.

Fechando ainda mais o nosso foco, podemos verificar, que o estado do Rio de Janeiro, que recebe sua água do Rio Paraíba do Sul, ainda não conseguiu definir uma política de gerenciamento de recursos hídricos. A bacia do Paraíba do Sul abrange uma das maiores regiões em densidade demográfica e desenvolvimento industrial do país e, em consequência, sofre a degradação pelo tratamento inadequado do esgoto doméstico, industrial, lixões e pela falta de uma política de conscientização dos municípios. As cidades de Volta Redonda e Barra Mansa, na região do médio Paraíba, no estado do Rio de Janeiro e Juiz de Fora, em Minas Gerais são consideradas altamente poluidoras.

No entorno desse bacia, vivem, atualmente, mais de 7 milhões de habitantes dos estados de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana, com mais de 10 milhões de habitantes, também são abastecidas pelo Rio Paraíba, graças a uma transposição para o Rio Guandu. O Paraíba também é responsável pela geração de energia elétrica, que abastece milhões de residência e milhares de empresas da região. Com todo esse potencial produtivo, era de se esperar ações de proteção para essa fonte de recursos, mas o que se vê é que as contrapartidas em investimentos para manter a bacia do Paraíba viva, é infinitamente menor do que o lucro que ela proporciona.

De alguma forma, é possível ver que algumas ações já estão sendo tomadas, mas os implementos só surtirão efeito a longo prazo, se houver diretrizes claras e constância nos investimentos. É preciso destacar também, que sem um Plano Nacional de Recursos Hídricos que envolva a população e empresários da região, o curso da bacia do Paraíba do Sul, nos três estados mais ricos do país, pode ser o mesmo dos riachos que desaparecem no Nordeste do Brasil. E quando isso acontecer, não vai adiantar chorar, pois lágrimas não fazem o papel da chuva.

Existe uma grande parte de estudiosos, políticos, empresários e até cientistas, que defendem o novo Marco Regulatório do Saneamento e isso, pode ser até compreensível, mas o que chama a atenção é a pressa em se definir regras do jogo em plena pandemia do covid-19. Ora, se o Brasil caminhou na contramão até aqui, porque dar um cavalo de pau, num momento tão difícil, onde fica evidente para todo o planeta a nossa incompetência em gerir uma crise de saúde em tempo de pandemia?

Não me venham falar que a pandemia é um motivador, por expôr a realidade brasileira, onde brasileiros estão em casa confinados, sem acesso a água, pois essa realidade é de conhecimento de todos, há mais de cinco décadas.

O Projeto de lei 4162, abre sim, um conjunto de perspectivas ao trazer o setor privado para dentro do problema. Resta saber, qual a posição do próprio governo a esta proposta – é o incentivo às boas práticas ou abertura de mais um nicho de produção visando o lucro das grandes corporações? Isso, mais do que nunca, precisa ficar claro, pois é impossível confiar quê, de um governo que barganha apoio para se salvar, venha alguma proposta, que não seja a exploração das riquezas por uma minoria abastada em detrimento do bem estar e da qualidade de vida dos cidadãos brasileiros.

A universalização dos serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto, primeiramente, deve passar pela questão ética – a garantia de água e esgoto a todos os cidadãos, independente, do valor que ele tem ou não para pagar pelo serviço. Depois de equacionada essa questão, aí sim, pode-se partir para uma gestão que envolva a lucratividade que os lobistas de plantão no Congresso Nacional, tanto ambicionam.

Foto Deni Williams

Que o setor precisa de investimentos para expandir os serviços e corrigir erros seculares, não é novidade para ninguém, mas é assustador perceber, que de uma forma geral, setores que deveriam estar com a lupa a postos sobre o PL 4162, estão a apoiar o projeto sem fazer o mínimo de questionamento.

Existe farta literatura sobre o tema, mas, a principal delas, está justamente na Constituição de 1988 – o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº. 11.445/2007 como o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais.

Portanto, perante a ordem jurídica vigente no Brasil, o acesso à água tratada é um direito fundamental e, sendo assim, deve ser garantida pelo Estado e configura-se um serviço público de caráter essencial. Cabe ao Estado brasileiro aprimorar-se como agente provedor e fiscalizador, de forma, que possa haver a ampliação e, consequente, universalização dos serviços de abastecimento e saneamento básico a toda população brasileira. Quem tem sede, tem pressa e não é mudando as regras do jogo, com a implementação de um marco regulatório, que o Estado Brasileiro vai conseguir pagar mais essa dívida social.

O governo já tem informações suficientes para entender que a falta de saneamento é um gerador de problemas de saúde e, quanto mais investimentos nesse setor, menos gastos seriam necessários na área de saúde, principalmente, com a população mais empobrecida nas periferias das grandes cidades do país.

Entenda a PL 4162 – Marco Regulatório do Saneamento

Em síntese, relacionamos alguns pontos do projeto base aprovado na Cãmara e no Senado:

  1. Prestação de serviços direta ou por meio de concessão dos serviços à iniciativa privada. O Projeto busca estimular a privatização de empresas estatais que prestam os serviços.
  2. Concorrência entre iniciativa privada x empresas estatais. As licitações teriam a participação de empresas privadas e públicas, sem direito de preferência para empresas públicas.
  3. Consórcios públicos e convênios de cooperação entre municípios vizinhos. Ampliação da área de cobertura, o que pode dar maior eficiência nos serviços.
  4. Contratos de concessão. Definição de cláusulas essenciais, abrangendo metas de expansão, redução de perdas, qualidade na prestação de serviços, eficiência e uso racional da água, reuso de efluentes sanitários e aproveitamento de águas de chuva, fontes de receitas alternativas, metodologia de cálculo de indenização relativa a bens reversíveis não amortizados, repartição de riscos, incluídos riscos de caso fortuito e de força maior, fato do príncipe e álea econômica extraordinária, além de mecanismos de resolução de conflitos.
  5. Vigência dos contratos. Até março de 2022, os contratos de concessão ou “contratos programa” atualmente vigentes poderão ser renovados por mais 30 anos. No entanto, deverá ser comprovada capacidade econômico-financeira para investimentos visando a universalização dos serviços até 2033.
  6. Universalização do uso. Estabelecimento de metas para acesso à água potável, bem como coleta e tratamento de esgoto.
  7. Alternativas para sustentabilidade econômico-financeira dos serviços.Indenização de investimentos não amortizados, prestação de serviços regionalizada via blocos compostos por municípios visando ganho de escala, menor exigência em estudos de viabilidade técnica, simplificação dos planos de saneamento para pequenos municípios.
  8. Planos de saneamento básico. Estabelecimento de metas e indicadores de desempenho e mecanismos de aferição de resultados.
  9. Regulação e fiscalização. Definição da entidade responsável pela regulação e fiscalização dos serviços e da atuação da Agência Nacional de Águas (ANA).
  10. Política Nacional de Resíduos Sólidos. Prorroga o prazo para o fim dos lixões, mas estabelece condições que devem ser atendidas pelos municípios, como a fixação de plano de gestão de resíduos sólidos e de taxas (ou tarifas) para sustentabilidade econômico-financeira.

    (fonte: rolimvlc.com)

Caso o projeto seja aprovado é certo que o futuro será incerto. Como é certo também, que, nesse momento todo cidadão brasileiro deve levantar sua voz, se fazer ouvir, ser resistente às imposições inconstitucionais e garantir que a atual e as futuras gerações não tenham que ficar dependentes das imposições de mercado para conseguir um copo d”água.