Por Thais Tozzini Ribeiro

Embora a lei brasileira preveja que imigrantes acessem os serviços de saúde, foram poucas as políticas públicas até agora desenvolvidas no país para tal segmento da sociedade

Diferentemente do que muitos pensam, a imigração não é uma decisão tomada de forma racional e confortável. Muitas vezes, é uma situação que se impõe ao indivíduo como alternativa de sobrevivência e gera fragilidade emocional e física. A discriminação, trauma e estresse procedente da saída de sua terra natal, falta de redes de suporte, declínio econômico e social, barreiras linguísticas e institucionais, rompimentos identitários, choque cultural e exclusão são algumas das questões com que o imigrante lida ao chegar a um novo país.

Além disso, em países de baixa e média renda, como o Brasil, a grande maioria deles também enfrenta os mesmos problemas que qualquer cidadão em situação social vulnerável: violência, desemprego, subemprego, falta de saneamento básico, habitação inadequada, dificuldade de acesso à educação, fome, urbanização desordenada, má qualidade do ar e da água. Neste contexto, a efetivação do direito à saúde surge como importante ferramenta para restabelecer a força e dignidade do imigrante e servir como ponto de apoio no novo país.

Entretanto, em uma época na qual os governantes mundiais parecem cada vez mais preocupados em impedir a entrada de imigrantes ou segregá-los dentro de suas fronteiras, de que forma o direito à saúde é previsto aos imigrantes? Existe qualquer tipo de esforço para a sua efetivação? Como o Brasil se insere nesse contexto?

O conceito de saúde global surgiu a partir da mudança de paradigma após a 2ª Guerra Mundial, que passou a valorizar o conceito de justiça social, embasada na equidade, na ética e no respeito aos direitos humanos na ordem internacional e reconhecer o direito à saúde como indispensável para a implementação de outros direitos. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), faz referência ao direito de todo indivíduo de ter um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar e, trinta anos depois, a Declaração de Alma-Ata (1978) foi o primeiro documento a garantir o direito à saúde no âmbito internacional, determinando ser uma responsabilidade do Estado garanti-lo.

No Brasil, a adoção desse conceito ocorreu nos anos 80 e se deu com a Constituição Federal de 1988 e com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) que organizou os serviços de saúde e traduziu em ação a efetivação da política de saúde no país.

O art. 196 da Constituição Federal fala da saúde como um direito de todos, de acesso universal e do Estado como agente responsável por garanti-lo, não fazendo nenhuma distinção entre brasileiros e estrangeiros. A nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) desenvolve a mesma lógica e coloca o acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória como um dos princípios da política migratória brasileira. A cidade de São Paulo se antecipou e em 2016 instituiu, por meio da Lei nº 16.478/2016, a Política Municipal para a População Imigrante, que, em no inciso II de seu artigo 7º, o acesso universal da população imigrante à saúde, observando as necessidades especiais relacionadas ao processo de deslocamento; as diferenças de perfis epidemiológicos; e as características do sistema de saúde do país de origem.

Venezuelanos esperam no posto da Polícia Federal na cidade fronteiriça de Pacaraima, em Roraima. Foto Reynesson Damasceno-Acnur

Contudo, antes destes dois marcos legislativos, a própria jurisprudência brasileira já concedia o acesso ao direito à saúde para estrangeiros, sendo um exemplo disso a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que determinou que o SUS pagasse o transplante de medula de um estrangeiro que estava no país em situação não permanente.

Na prática, foram poucas as políticas públicas desenvolvidas no Brasil para o público migrante. Em 2005, a Secretaria Executiva do Ministério da Saúde criou o Sistema Integrado de Saúde nas fronteiras (SIS fronteiras), que tinha como objetivo contribuir para o fortalecimento e organização dos sistemas de saúde dos municípios fronteiriços, incluindo o aumento de recursos repassados e o acesso a programas voltados a áreas específicas, de acordo com as necessidades dos municípios. Corumbá (MS) e Santa Helena (PR) foram alguns dos municípios beneficiados com a política.

No âmbito local, em 2003, Secretaria Municipal de Saúde, em conjunto com a Coordenação de Vigilância em Saúde da Cidade de São Paulo e organizações não governamentais, atuou no desenvolvimento de ações especificas para lidar com a tuberculose e o HIV que acometia os imigrantes bolivianos que chegavam às Unidades Básicas de Saúde (UBS). As ações mais relevantes consistiram na elaboração de material de esclarecimento sobre prevenção da AIDS e tuberculose, em espanhol; revisão dos pré-requisitos para atendimento nas UBSs, como por exemplo, a eliminação da necessidade de apresentação de documentos que comprovem residência, nas áreas onde se concentram os imigrantes; contratação de profissionais bolivianos para trabalharem nas UBSs e como agentes comunitários de saúde; oferta de cursos de espanhol e sobre cultura boliviana para profissionais das UBSs.

No âmbito local, em 2003, Secretaria Municipal de Saúde, em conjunto com a Coordenação de Vigilância em Saúde da Cidade de São Paulo e organizações não governamentais, atuou no desenvolvimento de ações especificas para lidar com a tuberculose e o HIV que acometia os imigrantes bolivianos que chegavam às Unidades Básicas de Saúde (UBS). As ações mais relevantes consistiram na elaboração de material de esclarecimento sobre prevenção da AIDS e tuberculose, em espanhol; revisão dos pré-requisitos para atendimento nas UBSs, como por exemplo, a eliminação da necessidade de apresentação de documentos que comprovem residência, nas áreas onde se concentram os imigrantes; contratação de profissionais bolivianos para trabalharem nas UBSs e como agentes comunitários de saúde; oferta de cursos de espanhol e sobre cultura boliviana para profissionais das UBSs.

Nas situações de crises humanitárias, onde o volume de imigrantes é maior, a prática brasileira é mais desastrosa. A falta de suporte do governo federal coloca o imigrante em uma situação que por si só agrava o seu estado de saúde, ou leva o sistema de saúde local a um colapso devido a uma demanda acima do normal.

O caso de Brasileia, no Acre, no qual em um galpão com capacidade para 200 pessoas foram abrigados mais de 830 imigrantes – quase todos haitianos vítimas de desastres naturais, em condições insalubres de higiene – é um exemplo da primeira situação. Essas condições resultaram em muitos casos de diarreia, piorando diretamente o estado de saúde dos haitianos e criando uma demanda ao sistema de saúde. Por conta do expressivo aumento da imigração de venezuelanos, em dezembro de 2016, o governo estadual de Roraima declarou emergência na Saúde Pública em Pacaraima e na capital, Boa Vista. Ainda que depois disso o Governo Federal tenha repassado recursos ao estado de Roraima, a Operação Acolhida, política do governo federal implementada em março de 2018 para o acolhimento de imigrantes vulneráveis, só dispõe de recursos até março de 2020.

No âmbito brasileiro, no caso dos imigrantes, é nítido que o conceito de saúde global está consolidado no ordenamento jurídico brasileiro, sem que, no entanto, tenha encontrado um respaldo prático estruturado. As políticas públicas pensadas e elaboradas para atender às necessidades dos imigrantes estão mais presentes na cidade de São Paulo, que teve casos de sucesso no passado e recentemente criou uma lei como base para a implantação de políticas futuras. No caso de crises humanitárias, ainda que o Brasil tenha acolhido haitianos e venha acolhendo venezuelanos, não houve um planejamento para o oferecimento de uma infraestrutura e atendimento, sendo um improviso para conter uma situação que já se encontrava em um nível insustentável. Tendo em vista que a globalização traz à tona e de forma mais expressiva as desigualdades e isso impulsiona a demanda migratória por melhores condições de vida, é preciso encarar a migração como um fenômeno recorrente e a garantia do direito à saúde como algo que transcende a legislação e encontra eco no planejamento governamental brasileiro.

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