Por Flavia Estevan e Ana Cristina Duarte

Na última quarta feira, 19 de junho, foi debatido, na Assembleia Legislativa de São Paulo, o projeto de lei 435/2019 proposto pela deputada Janaína Paschoal, do PSL. A iniciativa pretende permitir que mulheres possam optar por realizar uma cesariana, ainda que não tenham indicação médica para a mesma, no Sistema Único de Saúde (SUS). Para saber mais sobre esse PL veja aqui.

Na ocasião, durante quatro horas, deputadas, ativistas, médicas, obstetrizes, enfermeiras e instituições de saúde e do direito apresentaram dados científicos e argumentos sobre os diversos estudos que apontam para o risco desse projeto de lei.

Como a deputada Janaína, que integra o mesmo partido do presidente Bolsonaro, apresentou o projeto de lei em caráter de urgência, as quatro horas de debate foram a única oportunidade da sociedade debater o assunto.

“É um tema muito importante para ser aprovado com a pressa que foi, seria necessário mais discussão, acúmulo de opiniões, pois o ponto central é que não temos um sistema de saúde que discute com as mulheres sobre o parto normal e cesariana”, destacou a deputada Bete Sahão do PT.

Constatação feita por outras parlamentares, como a deputada Erica Malunguinho do PSOL, “Nós temos aqui uma disputa que é extremamente delicada, visto que esse projeto de lei traz uma mensagem política que contrapõe as metas do milênio de redução das cesáreas. Se a deputada Janaína Paschoal diz que existe uma imposição do parto normal, ao que parece, há uma imposição da cesárea, pois ele é maioria no Brasil.” E acrescenta, “O que está em disputa aqui é uma reflexão sobre os rumos da cultura de nascimento”.

Sociedade civil também desaprova Projeto

Daphne Rattner, médica epidemiologista, professora na UNB e presidente da Rehuna- Rede de apoio ao nascimento e parto, explica que o aumento das taxas de cesariana é um problema mundial, onde a maioria dos países vem aumentando essas taxas. O Brasil atualmente só perde para República Dominicana, que é o país campeão de cesarianas no mundo.

A Dra. Tânia Lago, pesquisadora do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, relata que em 1969 no Brasil a taxa de cesáreas no sistema público era de 13%. No ano seguinte, houve uma mudança na forma de pagamento deste procedimento, em vez de pagar ao hospital o pagamento passou a ser diretamente aos médicos. Além disso, o valor pago para a cesárea era o dobro do valor pago para o parto normal. Com isso, em 1971, a taxa de cesárea brasileira já era 18%, pois além dos médicos receberem mais e diretamente, ao optarem por este tipo de procedimento, também tinham garantido que o parto seria concluído em seu plantão e não no seguinte, o que acarretaria o pagamento para quem finalizasse o procedimento. Isso foi descrito, já naquela época, como “epidemia de cesáreas” e esse evento não tinha ocorrido em nenhum lugar do mundo. Em 1979, o Brasil já tinha 26% de cesáreas, o dobro dos 10 anos anteriores, destaca a Dra. Tânia.

Diante deste cenário, em 2016, a Rehuna, Rede pela Humanização do Parto e Nascimento, fez uma parceria com a Unicef para o lançamento da publicação “Assistência ao Parto e Nascimento- uma agenda para o século XXI”. Nela foi apresentado o dado que constata que a cesariana aumenta em até 6 vezes o risco de complicações graves, especialmente quando realizada sem indicação clínica. Entre as complicações há aumento do risco de morte, da admissão em UTI´s, maior necessidade de transfusão sangue e aumento dos casos onde é necessária a retirada do útero de mulheres.

Larissa Flosi, médica obstetra e representante do Sindicato dos Médicos de São Paulo, apresenta um importante relato sobre a formação médica em obstetrícia no Brasil.

“As evidências são claras sobre qual a melhor assistência a ser prestada, porém a formação médica é falha. Já é claro, do ponto de vista científico, que a cesárea eletiva não protege de anóxia (falta de oxigenação no cérebro do feto dentro do útero)”, explica a médica sobre uma das ideias que tentam sustentar esse projeto de lei. “É preciso deixar isso claro, pois temos as evidências sobre isso. A literatura aponta, por exemplo, que o desemprego materno é um dos fatores de risco associados ao mau desfecho obstétrico, como anoxia fetal, então precisamos olhar a mulher no contexto social global. Não vamos proteger os bebês fazendo-os nascerem por cesárea, a menos que haja indicação para isso. Não podemos mentir para as mulheres e dizer: -Pode escolher sua cesária porque você está protegida, isso é mentira, estaríamos mentindo para as mulheres. Não podemos defender a autonomia das mulheres sem informação, precisamos falar no pré natal para as mulheres que chegam assustadas, amedrontadas, precisamos melhorar a educação perinatal, mudar nossas práticas trabalhando em equipes multidisciplinares”, destaca Larissa.

Maria Silva, advogada e da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos advogados do Brasil (OAB), também ressalta que “determinar por lei que a mulher possa escolher fazer uma cesárea não vai diminuir a violência cometida contra as mulheres, principalmente com as mulheres negras. A urgência é buscar mudar as condições precárias do atendimento do SUS, acabar com o racismo institucional, para que mulheres nengras não sejam discriminadas”.

Marlise de Oliveira Lima, professora doutora do curso de obstetrícia da USP e representante do Conselho Regional de Enfermagem destaca a importância do papel das enfermeiras e das obstetrizes que acompanham as mulheres em um momento de transformação tão importante como é o parto e conta como é recorrente as mulheres dizerem após terem o parto normal que não acreditavam que seriam capazes, que não achavam que dariam conta e agradecem o apoio dessas profissionais, que apesar das condições precárias, prestam a melhor assistência possível.

“O conhecimento só pode se dar quando conseguimos movimentar coletivamente as diversas formas de pensar, daí surge a autonomia, a emancipação e o empoderamento. Nós estamos falando essencialmente e majoritariamente quando falamos de Sistema Público de Saúde no Brasil, de mulheres negras que foram empobrecidas no decorrer de um processo histórico e estrutural e a essas mulheres cabem infelizmente o legado de uma estrutura violenta e de forma alguma podemos tratar de problemas estruturais e complexos de forma rasa, simples ou em caráter de urgência, encerrou Erica Malunguinho.

É fato que tem sido recorrente no governo Bolsonaro a prática de “prometer” medidas que colocam em risco a saúde da população como forma de manter uma imagem positiva e consequentemente sua manutenção no poder, por mais contraditório que isso possa parecer. Prometer aprovar projetos de lei de porte de armas para todos; aumentar o número de pontos na carteira dos motoristas para que condutores possam efetuar mais infrações; retirar a obrigatoriedade das cadeiras para transportes de crianças nos automóveis, entre outras medidas que atentam seriamente contra a saúde da população brasileira e recomendações internacionais.

Ao encerrar o debate Janaína Paschoal explica: “Esse projeto é muito meu, não é um projeto de um partido ou de uma bancada e não houve acordo com o governo, eu acho até que se o projeto for aprovado aqui na casa haverá uma briga grande com o executivo. Já fui na Secretaria da Saúde e não houve o acolhimento que eu gostaria que houvesse. Eu quero dar voz às mulheres e muitas mulheres se sentiram violentadas ao desejar fazer uma cesariana e não terem a vontade observada”, disse a deputada do PSL.

O que ficou claro na reunião é a diferença entre os discursos pró e contra o PL 435. Se por um lado, os atores que dialogam contra o PL citam evidências, artigos, provas e estatísticas, os argumentos pró PL são emocionais, citando casos específicos e apoiando-se na hipótese de que as cesarianas protegem os bebês e as mulheres de sofrimento. Um impasse difícil de ser resolvido e com enorme cunho político com foco em jogos de partidos e futuros cargos.