por Felipe Honorato

Imagem – DW

Apesar de, em abril, o jornal inglês The Guardian ter publicado uma reportagem sobre o assunto, além de outras denúncias jornalísticas sobre casos terem sido divulgadas anteriormente, como a Reuters fez em maio e o El País em português fez em julho, somente nas últimas semanas, após um vídeo  sobre o mercado de seres humanos na Líbia ser veiculado pela rede CNN, o tema gerou uma onda de indignação mundo afora. No vídeo, é possível ouvir alguém afirmar que “os homens são vendidos por 1.200 dinares libaneses ou 400 dólares cada”. Em uma entrevista à BBC, anterior a atual comoção, o chefe da Organização Internacional para as Migrações (OIM) na Líbia, Othman Belbeisi, disse que “migrantes com habilidades específicas, como a pintura ou que saibam assentar azulejos, são vendidos a preços mais altos”.

Segundo informações, estes imigrantes subsaarianos que são negociados como escravos, servem a um mercado formado por moradores líbios, que os adquirem para trabalhar  em suas casas, fazendas ou plantações em troca de refeições e abrigo. Eles são submetidos a uma rotina de extrema violência por seus “donos”.

Em uma declaração dada a agência France Press, Ghassan Salamé, enviado especial da ONU na Líbia, defendeu que o país africano “não tem um exército ou polícia à disposição” e que “não se trata de má vontade, mas de incapacidade” porque “não dispõe das ferramentas para governar”.

 

Líbia: uma antiga porta de entrada para a Europa

Em 1969, após liderar um golpe de Estado que depôs o rei Idris I, o coronel Muamar Kadafi iniciou seu governo que duraria 42 anos na Líbia. Kadafi, à época, apesar de suas excentricidades, como ter um aparato de segurança pessoal formado unicamente por mulheres e, em suas viagens internacionais, carregar consigo e se hospedar em tendas beduinas típicas de sua região natal, o norte da Líbia, era bem quisto dentro da comunidade internacional. Durante a década de 1970, Muamar Kadafi escreveu o Livro Verde, um tratado político que oferecia alternativas nacionais ao capitalismo e ao socialismo, além de ter desenvolvido o conceito de “Jamahiriya” – o poder seria exercido por meio de muitos comitês populares.

O que se seguiu, então, foi uma série de ações que não agradaram em nada as potências ocidentais: Kadafi forçou uma renegociação dos contratos das petroleiras que atuavam no país, fazendo com que a fatia dos lucros recebida pela Líbia referente ao petróleo extraído de seu solo fosse muito maior e o país atingisse níveis de produção comparáveis aos seus pares do Golfo Pérsico; Kadafi também começou a financiar abertamente organizações que atuavam na luta contra o colonialismo e o imperialismo, como o Partido dos Panteras Negras, a Nação do Islã, o ETA  e o Tupamaros, além de se envolver militarmente em conflitos de países vizinhos, como ocorreu na guerra civil do Chade. Neste mesmo período, denúncias de prisões arbitrárias, censura da imprensa e abusos contra opositores do mandatário líbio começaram a surgir.

Durante os anos de 1980, as relações entre a Líbia e o exterior se deterioraram de vez: o presidente estadunidense Jimmy Carter colocou o país na lista de financiadores do terrorismo e, como reação, a Líbia passou a interceptar jatos comerciais estadunidenses que tentavam cruzar o Mediterrâneo; em 1986, Ronald Reagan acusou agentes líbios de terem atacado uma discoteca em Berlim, vitimando dois militares estadunidenses; o episódio culminou em um ataque aéreo contra o país africano.


A Líbia permaneceu isolada internacionalmente até o fim da década de 1990, quando o próprio Kadafi iniciou movimentos em direção a uma reinserção de seu país: na África, Muamar Kadafi tentou criar a imagem de “novo messias do pan-africanismo”, propondo, entre outras coisas, um passaporte único aos membros da União Africana; se reconciliou com as potências ocidentais, mantendo diálogos secretos com o governo britânico, cedendo à pressão dos EUA e desativando seu programa de desenvolvimento de armas de destruição em massa; se aproximou das potências orientais, recebendo o presidente chinês em Trípoli, capital do país, e visitando Vladmir Putim em Moscou.

A questão da imigração entre África e Europa, já em voga no início dos anos 2000, também serviu como mais uma frente de negociação para que Kadafi e a Líbia reconquistassem voz no cenário diplomático: a Líbia, além de ter um passado colonial comum com a Itália, configurava-se como uma das principais rotas de imigrantes indocumentados para o continente europeu, pois sua costa fica a apenas 400km de distância da península italiana; em 2006, os países fecharam uma série de acordos, tendo, entre outras coisas, o então primeiro ministro italiano, Sílvio Berlusconi, pedido desculpas formais pelas consequências do colonialismo italiano à Líbia, além de a nação de Kadafi ter recebido montantes expressivos da União Europeia para investir em medidas que retraíssem a chegadas de africanos a Lampedusa, uma ilha italiana.

Até este ponto, a Líbia era mais uma das difíceis e tortuosas alternativas que imigrantes indocumentados tinham para tentar chegar a Europa. Como relatou o El País em Português: “Antes da guerra —o conflito irrompeu no âmbito da Primavera Árabe, em 2011–, a Líbia era uma das várias rotas imigratórias em direção à Europa. As máfias optavam às vezes por transportar os imigrantes à Mauritânia e dali alcançar em caiaque as Ilhas Canárias; ou atravessar a Argélia para chegar a Marrocos e saltar a cerca de Melilla; ou cruzar a Líbia e tentar navegar em balsa até a ilha italiana de Lampedusa”.

George W. Bush, que havia costurado o acordo de não ploriferação de armas de destruição em massa com Kadafi, deixou a presidência dos EUA e a administração de Barack Obama assumiu. No seio da Primavera Árabe, a administração Obama e seus aliados, através Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), apoiaram grupos opositores a Muamar Kadafi que, em 2011, o destituíram e o assassinaram.

Após a queda do ditador, a Líbia se tornou terreno fértil para todo tipo de criminoso, que se aproveitam do caos para lucrar: o Estado líbio não conseguiu se reestabelecer e o governo líbio reconhecido pela comunidade internacional, comandado pelo Governo de União Nacional (GNA, na sigla em inglês), não tem autoridade total sobre o território; em cada porção do país, há uma milícia diferente que parece ditar as regras. Assim, traficantes de seres humanos circulam pela Líbia sem maiores dificuldades, com a certeza de que as instituições governamentais não tem, atualmente, condições para atrapalhar suas atividades. A Líbia se tornou a única rota de imigração da África para a Europa, e lá, imigrantes indocumentados e altamente vulneráveis são presas fáceis para os mercados de escravos.

 

Qual pode ser o tamanho da responsabilidade da Itália?

Como destacado anteriormente, a Itália está a apenas 400 km da Líbia, o que faz com que a Líbia seja uma das principais portas de saída de imigrantes africanos para a Europa, e a Itália seja uma das principais portas de entrada destes imigrantes na Europa. Segundo noticiou a revista estadunidense Vice, este ano, os governos líbio e italiano teriam supostamente fecharado um acordo. Segundo este acordo, quando navios militares italianos avistarem barcos de imigrantes tentando atingirem a Europa no mar, eles avisarão a Guarda Costeira líbia, que resgatará a embarcação. Em troca, a Guarda Costeira líbia recebe financiamento e treinamento da Itália. Tudo isto, pois se uma embarcação militar italiana realiza o resgate de imigrantes, eles são obrigados a levá-los para o território italiano – a medida, então, seria um desafogo.

Suspeita-se que o suposto acordo entre os dois países tenha gerado uma super concentração de imigrantes em território líbio, alastrando o mercado de escravos. Hoje, a OIM estima que de 700 mil a 1 milhão de imigrantes estejam na Líbia e que 2 mil pessoas tenham morrido tentando atingir a Europa pelo mar somente este ano.

 

Depoimentos revelam frieza, crueldade e racismo

Depoimentos de imigrantes que conseguiram escapar do “inferno completo” que é a Líbia hoje, como um deles disse, revelam um ambiente carregado de frieza, crueldade e racismo. Ainda esta semana, o site da revista Carta Capital, reproduzindo um conteúdo da Rádio França Internacional, trouxe à luz uma série de narrativas aterradoras sobre o drama vivido por subsaarianos no país africano: ““Os líbios não têm nenhuma consideração pelos negros. Eles nos tratam como animais, estupram as nossas mulheres. E há um verdadeiro comércio de negros lá, exatamente como na época da escravidão. As pessoas vêm e compram””, afirmou Maxime Ndong, “jovem que passou oito meses no calvário líbio junto com a esposa, da qual não tem notícias há três meses”; já Mohamed Bamba, da Costa do Marfim, revelou, na mesma reportagem, um pouco de como funciona o modus operandi dos traficantes: “ […] em pleno deserto nigeriano, ele descobriu que a conta para fazer a travessia tinha subido 150 mil francos CFA (873 reais) – dinheiro que o jovem não possuía. “Como eu não tinha como pagar, fui vendido para uma pessoa. Essa pessoa me comprou e fiquei em dívida com ela”, relata, em depoimento à RFI. “Eles não me davam comida e o que eu ganhava eu tinha que dar para eles, para poder comer. Se eu não ganhasse nada, não comia””; Bamba ainda completou, escancarando todo o racismo envolvido na situação: ““A Líbia é muito difícil. Os militares nos batem a todo o momento, dizendo que os negros são amaldiçoados por Deus”.

Na reportagem do El País em português, um jovem da Gâmbia, de nome Abou Bacar deu um testemunho detalhado de como funcionam as vendas de escravos: ““Todos os dias chegavam homens árabes, às vezes com guarda-costas, e então nos levavam ao pátio. Ali tínhamos de nos sentar assim –Abou se senta no chão, com as pernas abertas–, em fila, cada um entre as pernas do que estava atrás. Era como um trem que formávamos no chão.” Abou retorna à sua cadeira e continua o relato: “O homem árabe passeava entre nós e escolhia alguns. Escolhia os fortes, os que não pareciam que iriam morrer em dois dias. Ele os escolhia como quando você escolhe manga no mercado de frutas. Depois pagava às pessoas do gueto e os levavam. Todo dia chegavam homens árabes para nos comprar””. Ainda na mesma reportagem, uma moça nigeriana chamada Marian explicou como virou escrava sexual na mão dos traficantes: ““Quando chegamos a Trípoli nos colocaram em um sótão sem janelas. Perguntei quando chegaríamos à Itália e um homem me disse: nunca””; ““Uma mulher explicou a situação ao nosso grupo de meninas que estava no sótão. Nos disse que, se quiséssemos voltar a ser livres, precisávamos pagar um valor (Marian não quer dizer quanto) e que a única maneira de conseguir era sendo prostitutas nesse sótão””.

Fonte: El País em Português

Reação da sociedade civil

Jogadores de futebol que atuam na Europa iniciaram uma onda de protestos contra a situação de escravidão presenciada na Líbia: Geoffrey Kondogbia, atleta do Valência de origem centro-africana,  durante um jogo contra o Espanyol, ostentou uma camiseta com os dizeres: “Futebol à parte, não estou à venda”. Paul Pogba, do Manchester United, e Cheick Doukouré, jogador do Levante, comemoraram seus gols com um gesto  unindo seus antebraços, como se estivessem atados.

No Twitter, as hashtags #stopslavery e #StopEsclavageEnLibye (“parem a escravidão” e “parem a escravidão na Líbia”) foram lançadas.

Em Paris, no último sábado, cerca de mil pessoas saíram às ruas, em uma manifestação contra a escravidão na Líbia. Na própria França, em um texto publicado no jornal Libération”, um grupo composto por artistas, intelectuais, esportistas e militantes pediram uma ação internacional imediata contra a prática “que o mundo descobre com estupefação e as ONGs sabiam e denunciavam havia anos”. O texto também atentou para a responsabilidade da União Européia, através de sua política migratória, no que está ocorrendo na Líbia: “A responsabilidade moral – e judicial? – da União Europeia neste pesadelo é mais do que uma constatação: é uma vergonha que nós recusamos que seja coberta pelos habituais comentários apaziguadores sobre a ilusória ‘melhoria das condições de detenção’. Não melhoramos a prática escravagista […] Nós a combatemos até o seu desaparecimento total”.

Em meio a sociedade líbia, muitas pessoas se mostraram bravas com a repercussão das imagens divulgadas pela CNN. Isto porque, para muitas delas, o que acontece no país hoje é resultado direto dos arrochos promovidos pelos europeus em suas políticas migratórias, dificultando a travessia do Mediterrâneo e piorando, de forma considerável, a vida dos imigrantes durante sua passagem pelo território líbio.

 

Reação política

Muitos mandatários africanos agiram de forma pronta e dura ante a repercussão das imagens divulgadas pelo canal de notícias estadunidense: Mahamadou Issoufou, presidente do Níger, solicitou uma investigação ao Tribunal Penal Internacional e convocou seu embaixador na Líbia para consultas; Roch Kaboré, de Burkina Faso, tomou a mesma atitude, além de apelar às autoridades líbias para que atuem; o governo do Senegal exigiu uma investigação pelo que o presidente malinês, Ibrahim Boubacar Keita, denominou de “barbárie que interpela a consciência de toda a humanidade”. Entre os presidentes, houve um consenso de que a União Europeia, a União Africana e as Nações Unidas devem intervir de forma rápida na situação. A Costa do Marfim, por sua vez, decidiu repatriar, no último final de semana, 155 migrantes que estavam retidos em um centro de detenção de Zouara, no oeste da Líbia.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, reagiu a reportagem da CNN afirmando que ficou “horrorizado”: “A escravatura não tem lugar no nosso mundo e estas ações estão entre os mais graves abusos dos direitos humanos e podem constituir crimes contra a humanidade”, disse, acrescentando que pediu “aos atores relevantes das Nações Unidas” a criação de uma investigação em caráter de urgência para levar os responsáveis perante a justiça, para responderem por crimes contra a humanidade. Já o Conselho de Segurança da ONU aprovou, de forma unânime, uma resolução apresentada pela Itália que demanda por ações severas contra o tráfico humano e a escravidão moderna.

As autoridades líbias, representadas pelo vice-primeiro-ministro do governo líbio de união nacional, anunciaram a abertura de um inquérito para apurar as circunstâncias.