Os médicos e profissionais de saúde encerraram mais uma etapa da sua reivindicação por melhores condições salariais e de trabalho, e dificilmente poderia ter havido um acontecimento mais inspirador para assinalar o fim da segunda greve geral do sector da saúde este ano, do que o acto público de centenas de pessoas que sábado 15 de Junho marcharam pelas ruas de Maputo. Marcharam médicos, técnicos, enfermeiros, serventes. Populares, jornalistas. Marcharam pela Dignidade, a sua própria, a do povo moçambicano, e em última instância, a Dignidade Humana. Entre eles, mesmo diante de muita adversidade, era visível o mesmo espírito revolucionário que desde sempre inspirou os grandes avanços da sociedade humana.

Marcha pela Dignidade

Na linda manhã de sábado 15 de Junho de 2013, um dia de inverno e sol radiante, assistiu-se a um magistral resumo de todo período de greve. Começou com os manifestantes mais pontuais apresentando-se ao local de concentração, localizado, muito simbolicamente, na rua que separa as instalações da Associação Médica de Moçambique (AMM) das do Ministério da Saúde (MISAU). O que deveriam ser apenas alguns passos de separação, transformou-se dia após dia num abismo de divergências entre duas instituições tão próximas fisicamente, mas tão distantes no valor que dão à saúde dos moçambicanos.

Ao pequeno grupo inicial foram-se juntando mais e mais pessoas. Enquanto isso, as autoridades policiais contribuíam também a sua parte: a marcha foi impedida de seguir a rota inicialmente marcada, porque ela passaria em frente de instituições soberanas do Estado (que aos sábados estão encerradas). Não só uma violação dos direitos civis à livre manifestação, como também mais um ridículo argumento para tentar desmoralizar todo aquele que queira se manifestar.

As pessoas não desistiram e, depois de negociar outra rota, a marcha seguiu o seu destino. Gritos sarcásticos de “nós somos fantasmas” ecoavam incessantemente, ironizando a recente aparição pública de um alto representante do governo, que com uma arrogância repugnante afirmou que “o Estado não pode negociar com fantasmas!”. Na mesma onda de alegre ironia, os marchantes fizeram questão de se deter por um momento num painel publicitário das eleições presidenciais de 2009, onde, desgastada por acção do sol e da chuva, a foto do presidente eleito é que fazia lembrar um fantasma. O que de certeza se converteu em fantasmas foram as suas promessas eleitorais de lutar arduamente contra a pobreza absoluta.

 [media-credit name=”Foto: Marcha passa por cartaz do presidene desgastado em Maputo | Mundo Sem Guerras” align=”aligncenter” width=”600″]greve-medicos-mocambique-02-web[/media-credit]

A suspensão da greve

A decisão de suspender a greve foi tomada em assembleia de médicos realizada depois da Marcha. Foi uma decisão que deixou surpreendidos a muitos, e tristes a aqueles que depositavam no movimento uma esperança de mudanças importantes na Saúde e na sociedade moçambicana em geral. Mas o vasto repertório de manobras opressoras utilizadas pelo Governo levaram de vencidos os profissionais de saúde, por agora.

Comunicado de suspensão da greve:

http://www.facebook.com/media/set/?set=a.588434964534424.1073741837.417621241615798&type=1

Desde o mais variado leque de represálias como despedimentos e expulsões de suas residências, às prisões infundadas e agressões físicas, à utilização descarada dos maiores meios de comunicação “públicos” para transmitir informação falsa ou comunicações governamentais de desrespeito por aqueles cujo trabalho é salvar vidas, viu-se de tudo. O desfile de atrocidades vinha de todos lados do aparelho de Estado: directores de hospitais, governadores provinciais, ministros, e claro, da presidência da República. Se a luta pela dignidade transcendeu os profissionais de saúde e foi abraçada pelo povo, os esquemas de opressão transcenderam o MISAU e foram abraçados pelos muitos dirigentes que sentiram seu poder ameaçado.

A classe médica não esteve ainda suficientemente unida para enfrentar tamanha máquina de medo e opressão. Mais que isso, o povo não se mostrou ainda suficientemente acordado para tomar a mudança nas suas mãos. Vários outros sectores, e a sociedade em geral, esteve hesitante em levar à prática o seu apoio e em tomar como suas as exigências dos médicos, uma vez que são também seus os mesmos problemas que eles enfrentam.

Assim, foi principalmente o povo que saiu a perder. Porque perdem todos os dias os que sofrem injustiças e se resignam, ou os que vêem injustiças e ficam indiferentes. Perdem os que vivem fechando os olhos ao problema da violência instalada na sociedade actual, não só a violência física de mandar prender e bater, mas também as outras formas mais dissimuladas de violência (como por exemplo a violência económica das disparidades salariais ou a violência psicológica de roubar a esperança a milhões de seres humanos). Perdem os que se anestesiam do seu sofrimento pessoal, refugiando-se nas falsas portas que oferece o sistema, sem nunca parar por um instante para meditar sobre o sentido maior de suas vidas. Nunca é derrotado aquele que insiste na causa justa, uma ou mil vezes.

 

Uma aurora de coragem

Como diz o comunicado dos médicos, estes 27 dias de greve foram “os primeiros passos rumo à dignidade e valorização da nossa classe”. Foram também, nas palavras de uma apoiante não-médica, uma “aurora de coragem”. Esta intenção de trabalhar para a dignidade e justiça de todos seres humanos, vem de um passado muito longo, já desde muito antes das épocas em que cientistas eram mortos por afirmarem que a terra é esférica e não plana, ou de os escravos deportados sonharem com a liberdade. Esta intenção constrói um futuro ainda mais longo, rumo a uma Nação Humana Universal, na qual se coloque o ser humano como valor central e se implemente na prática a igualdade de direitos e oportunidades para todos. As inúmeras “Primaveras reivindicativas” que vemos hoje em todo mundo, com uma sensibilidade revolucionária não-violenta, abrem a esperança no futuro da Humanidade e reforçam esta causa pela qual vale a pena viver. A greve dos profissionais de saúde em Moçambique foi um passo mais, neste “Long Walk to Freedom” (Nelson Mandela).

 

Resumindo, moçambicanos:

  • Ganhamos em evidências da aberração que é o nosso governo. Agora sabemos melhor do que são capazes: de fazer lembrar os fascismos e as ditaduras supostamente ultrapassadas. E vimos do que são incapazes também: respeitar e servir o povo que o elegeu.
  • Ganhamos em consciência popular. O povo esté mais desperto e consciente de que a situação é crítica e de que a necessidade de agir está nas suas mãos. Esta greve foi provavelmente o maior contributo à ‘elevação da auto-estima’ colectiva do povo moçambicano desde que essa se tornou uma das bandeiras do nosso desenvolvimento.
  • Ganhamos um exemplo inspirador para futuros protestos. Todos injustiçados e indignados têm agora uma referência de como levar adiante a luta pelas legítimas aspirações humanas. Aproximou-se a certeza de que “a não-violência é a força que transformará o mundo” (Silo).

Por esta aprendizagem colectiva agradecemos aos profissionais de saúde, e a todos aqueles que os apoiaram neste singular momento da história de Moçambique.

A luta, continua!

Por Mundo sem Guerras e sem Violência*

*Organismo do Movimento Humanista – corrente de pensamento e acção fundamentada na obra de Silo, seu fundador.