CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Por que não podemos abrir nossos sentimentos e gritar ao Universo que sabemos amar?

Esse era o sentimento que impulsionava Renata, uma menininha de doze anos, nascida na Rocinha e em meio ao emaranhado de ruas e vielas, casas e prédios, formou-se linda e voltada para o cuidado de seus pais.

Pois é, o mundão nos leva a coisas assim: uma linda menina de doze anos cuida de seus pais. Seu pai sofrera acidente de trabalho na modalidade terceirizado, situação precária como um avião em livre queda, com isso não tinha assistência alguma previdenciária; a mãe era muito doente, acometida de fibromialgia não conseguia sequer levantar-se da cama.

Renata fazia sacolés – aprendera com uma amiga da rua – e, assim, ia vendê-los nos sinais da Cidade Maravilhosa.

Um aparte: fala-se muito em pais irresponsáveis, mas pouco se fala em filhos precocemente conscientes de sua capacidade de sobrevivência frente à desigualdade senegalesa a que o povo desse país é submetido.

Assim passavam os dias e em tempos de verão a menina conseguia arrecadar algum trocado, sempre muito pouco.

De fato, seu passo era firme, sua desenvoltura em abordar um freguês era a daquela mistura bem carioca de brincadeira com seriedade objetivando realizar suas vendas. Talvez esse jeito de trabalhar fosse uma tentativa de Renata ser criança frente a uma vida que forçava sua maturidade.

– Vai uma sacolinha aí, amigão? – Chega Renata a um potencial novo freguês. – Olha que hoje é o melhor do mundo e tudo saído aqui dessa mãozinha!

– Sai da minha frente, sua pivete! – Ríspido rosna o homem de mais de dois metros e gordo como um leão marinho, e, de um repelão, empurrou-a para o lado.

Batendo seu ombro em um poste, machucou-se e começou a chorar.

Havia um pipoqueiro que trabalhava embaixo do viaduto que sempre olhava Renata, admirava toda aquela vivacidade dela; sentia vontade de estar próximo, justamente para protegê-la de situações como a do leão marinho.

Exageradamente tímido (sentia vergonha até de se olhar no espelho), o pipoqueiro, que se chamava Antunes, nunca tivera coragem de se aproximar da bela e perseverante menina; naquele dia, devido às circunstâncias, sem piscar estava ao lado de Renata.

– Olha, eu vi tudo, você foi vítima de agressão, se eu tivesse conseguido o arrego dos hômi para esse mês, eu chamava a puliça, mas esse mês não vendi muito e estou sem dinheiro para pagar os serviços de proteção. – Falava ternamente com tom paternal. – Venha cá, eu vou passar um pouco de gelo no seu braço machucado, tenho gelo aqui no isopor de refrigerantes.

Renata não entendia muito bem o porquê de aquela pessoa estar tão preocupada com ela, uma vez que sempre se virou sozinha. Tirando o beijo matinal de bom trabalho que sua mãe lhe dava, não tinha maiores referências de carinho, acolhimento ou empatia.

Mas ela percebia alguma coisa diferente no olhar de Antunes, um calor solar que a fazia se sentir muito bem.

– O senhor é meu amigo?

– Sim! Sempre fui desde a primeira vez em que você apareceu no sinal em frente à minha barraca. Sempre serei seu amigo

– Eu nem sei o que dizer, nunca tive um amigo, nunca tive ninguém… O senhor gosta de brincar de adoleta?

– Eu não sei…. Nunca brinquei disso, mas posso aprender com você.

E assim entabelaram uma conversa interminável de conhecimento um do outro.

Ele, já idoso, com um olho de vidro e bigodes bastos e amarelecidos pelo antigo costume tabagista, não tinha filho; no passado, conhecera seu grande amor, mas fazia anos que sua esposa falecera, e, portanto, era um solitário. Antunes nunca perdeu a esportiva: buscava em tudo o que há de bom na vida. Seu Sorriso era seu apelido na rua.

Ela, uma criança de doze anos doce e amorosa, um pouco mudada pela gravidade que a situação degradante de seus pais imprimia em seu semblante, mas também nunca perdeu a jovialidade e a vontade pulsante de viver. Era negra e seus olhos já expunham uma vibração forte com ares de guerreira monjolo. O cuidado dos pais para ela era sagrado e assim o desempenhava todos os dias.

O lugar onde ambos trabalhavam era sombreado pelo viaduto, as paredes pareciam retalhos de tantos cartazes sobrepostos e mal retirados; Antunes matinha a higiene local varrendo e dispondo lixeiras nas proximidades de sua barraquinha.

Sorria como uma criança para Renata e sentia em seu íntimo uma vontade acalentadora de chorar.

Renata percebia uma onda inexorável de segurança.

Dois dias depois, os pais da bela foram vítimas de balas perdidas provindas da intensificação de operações policiais na favela. Essas atividades eram fundadas na necessidade de o governador, candidato a mais um mandato, mostrar para seu eleitorado de cidadãos de bem que mataria cristãmente a bandidagem – claro que o que matou foi a população de trabalhadores como sempre, mas a opinião pública relevou tal acontecido.

Desesperada e sem rumo Renata pôs-se a andar a esmo pela Rocinha; chorava compulsivamente tentando mudar o rumo do que lhe tinham imposto.

– Malditos! Que morram para pagar o que fizeram com papai e mamãe! – Ódio tomava seus sentimentos soterrando sua sensibilidade natural.

Rasputin, o dono da boca próxima à casa de Renata, lançou um olhar de predador para a menina; o que ele vira nela? Uma menina sem formação do corpo ainda. Acontece que como um homem clandestino, assassino e traficante, desenvolvera a depravação como uma forma de sobrevivência e tal sentimento tomou conta de toda sua alma: por isso, desejou ser dono de Renata.

– Ei, Menina! O que há com você? Relaxa! – Sorrisinho canalha no fundo de tudo o que falava. – Venha aqui para conversar comigo! Diz o que aconteceu pra mim.

– Mataram papai e mamãe! Estou sozinha não tenho mais ninguém!

– Você tem a mim! – Aproximava-se dela como uma serpente na busca de seduzi-la com promessas de casa, comida e roupas. O que queria era mais uma “mulher” e que ao mesmo tempo trabalhasse como vapor para o tráfico. – Venha cá. – Levou-a para um elevado que dava para uma vista magnífica do Rio de Janeiro.

– Para onde está me levando?

– Para essa visão. Quero que você entenda que eu sou o dono disso aqui tudo, meu domínio vai até a gente perder de vista. Eu forneço para todo o mundo aí embaixo. Sou o rei e você pode ser minha rainha; vou te encher de pulseiras e brincos de ouro…

Renata não entendia nada do que Rasputin dizia, ela apenas entendeu que ia ganhar brincos e pulseiras, mas já pelo seu tempo de rua e observação dos tipos que circulavam no sinal de trânsito em que trabalha, já intuía maldades e, com isso, entendeu que aquele homem estava consumido pelo mal e queria fazer coisa errada com ela

– Eu preciso ir embora, tenho que preparar meus sacolés para vender amanhã. – falava se desvencilhando dos braços famintos do pedófilo.

– Você fica, meu amor! Agora você me pertence.

No dia seguinte, Antunes não viu Renata e sentiu que havia algo de errado. Alguém estava fazendo mal a sua amiga.

Largou sua barraquinha com o dinheiro do caixa aberto e correu para o endereço da criança; viu os corpos ainda exangues de seus pais perfurados e tingidos de vermelho jogados displicentemente pela cama e chão; perguntou a todos os vizinhos o que tinha acontecido; foi comunicado de tudo, até do sequestro de Renata pelo dono da boca.

Sem olhar para o lado, pegou uma barra de ferro providencialmente jogada ao largo de casas em eterna construção e foi até à boca de fumo.

– Quem é Rasputim aqui? Quero vê-lo agora!

– Sou eu, velho! O que você quer comigo?

A boca era escura, mas devido aos enfeites e luzes de Natal, estava claro como uma tarde ensolarada. Puderam olhar-se um ao outro.

– Quero a minha amiga, a Renata! Eu vou cuidar dela…

– Ihhhhh… Olha só, essa menina deve ter mel, o velho tá querendo se aproveitar também. Eita velho safado!

Antunes sabia que não adiantava explicar a empatia que tinha por Renata, ela era como a neta que não teve; ele estava disposto a dar todo o cuidado que uma criança deve ter; daria sua vida por ela e agora seria seu pai e sua mãe.

Rápido como uma bala: Rasputim retira a barra de ferro das mãos de Antunes, segura-o por sua nuca e joga todo o peso metálico de sua pistola no rosto dele.

– Cala a boca, velho tarado! Perdeu! Tú tá morto na minha mão!

– Escuta, Rasputim, o que eu quero é minha neta de volta! Ela é minha amiga mais querida e eu sou o seu pai e sua mãe agora.

Aperta o gatilho que ressoa a música enegrecida da morte; Antunes sente todo o peso de não poder cuidar e dar dignidade a Renata; sem temer, olha o traficante encarando-o.

Naquele momento ouve-se o estampido da arma; Rasputim ri como um bode ensandecido sentindo o calor do ódio domar seus movimentos.

– Alguma coisa está errada, o que você fez seu velho?

Afasta de sua vítima, passa mão pela barriga ergue-a e vê seu sangue borbotando: fora alvejado, mas, por quem?

Surpreende o que vê: a menina com o revólver ainda fumegante do disparo corre em sua direção e tenta ajudar de alguma forma.

Esse é o sentimento do bem, o horror de ver seu querido amigo morto obrigou-a a alcançar uma pistola que estava jogada por cima de uma mesa e atirar no malfeitor, mas, passada a necessidade do ato, entende ser aquele ferido um ser humano a quem tenta ajudar.

Logo em seguida, Antunes a acompanha no socorro. Por sorte a bala atravessara o baço e a hemorragia não era grave. Rasputin seria salvo pela UPA – daquele tiro, porém morreria em decorrência de sarna, salmonela e bronquite que contraíra na unidade de pronto atendimento.

E o Natal trouxe a paz. Antunes e Renata se cuidaram e se cuidam até hoje, ele é seu pai, sua mãe e seu avô; ela é sua filha, sua neta e sua melhor amiga.

Não eram mais sós.

Que esse amor ilumine minha família, guie minha filha Ana Clara e meu filho Lucas Romero.

Que esse amor esteja sempre entre mim e Ana Claudia.