A inteligência, procurada a cada dia e ampliada pelo coletivo, se vê no lago intenso do pessimismo quando busca entender o porquê de se prender e de se manter em presídios pessoas que furtam shampoo e barbeador, como ocorreu em São Paulo durante a pandemia. Há mais com o que destroçar a alma; para além de afetar o exercício do pensar também afeta o de sentir, afinal somos sencientes para além de sapiens. Mas vale para sempre perguntar o que somos nós e qual o lugar que ocupamos nesse mundo. Pois é, nós quem? Muitos nós há em nós. Há entre nós os que podem ser presos por furtos de shampoo, barbeador, arroz, macarrão ou frutas; mas difícil é achar, entre os vários nós, os que vão presos quando se apropriam de dinheiro administrado pelo Estado que deveria ser investido nos direitos sociais da população. Esses, em geral, não vão presos; e pouco ou quase nada resolvem tais prisões para realizar um processo educativo que favoreça um mundo melhor.

Se agarrar ao otimismo da vontade, para nos assumirmos como sujeitos de transformações neste mundo, é o que nos resta, ainda mais na situação atual. Por que uma ministra do STF, bem como espaços do Estado chamados de justiça, como os de São Paulo, mantêm presas pessoas em presídios com taxas  que superam 150% de ocupação? Ambientes lotados de pessoas, na grande maioria negras e empobrecidas pelo sistema, e sem parar de receber mais pessoas em lotes iguais, as que são precarizadas materialmente pela força da exploração, do racismo e da opressão. Longe de servir para proteger outras pessoas, as que não estão nos cárceres da injustiça, tais ambientes só servem para ampliar a repressão e o controle. Faz crescer uma ideologia potente do medo contra os iguais e os diferentes, enquanto os antagônicos vivem cada vez mais saboreando às custas das condições da maioria. Não é possível que sejam vistas como naturais, muito menos razoáveis, decisões como essas, de prisões absurdas que pesam sobre o corpo das pessoas da periferia, que nada trazem de segurança e que ainda ampliam a necropolítica que hegemoniza a sociedade.

Seja pela necropolítica, que dizima corpos e acaba com a vida, ou por uma abolição que nunca houve, que segue inacabada e que ainda se materializa com mais rancor nas prisões, nos sentidos do imaginário dominante não há revolta, tampouco a indagação sobre que tipo de ser humano precisa furtar tais equipamentos, produtos ou mercadorias para manter suas vidas.

Há, sim, um Estado que se volta para as coisas e que se coloca acima do Estado que deveria proteger e se voltar para a vida das pessoas. Para a maioria, as multidões, são oferecidas as mais barbarizantes formas de tratá-las. Uma estética que, seja qual for o nome que ganhe – fascismo, nazismo, autoritarismo, tirania –, faz explodir em veias do Estado o que chamam de segurança pública. Não há segurança, muito menos pública, no Estado que vive em um patrimonialismo estruturante e assassina as pessoas que mais precisam de condições materiais para viver. E seguirá sem haver, enquanto persistirem as prisões no atacado e a repressão sobre o povo mais empobrecido, negro, empurrado, em sua grande maioria, para os recantos da cidade.

O Estado não se cansa, mesmo quando entra em contradição com o próprio Estado. O CNJ tem recomendação que vai no sentido contrário de tais decisões: “: redução do fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo; medidas de prevenção na realização de audiências judiciais nos fóruns; suspensão excepcional da audiência de custódia, mantida a análise de todas as prisões em flagrante realizadas; ação conjunta com os Executivos locais na elaboração de planos de contingência; e suporte aos planos de contingência deliberados pelas administrações penitenciárias dos estados em relação às visitas”. Mas, ainda assim, com essas letras mínimas e longe de ótimas, o que vigora e predomina é justamente aquilo que tem a energia mais repressora e autoritária. Produto da formação social brasileira, de um capitalismo tardio desmedido, da falta de quaisquer oxigênios de liberdade e de democracia, que nos tem tomado em uma história de patrimonialismo estrutural e institucional.

Mas há a sociedade civil. Há setores organizados a favor dos direitos, dos humanos e dos animais não humanos, de todos os seres sencientes e conscientes. E é justamente nesse tempo, que ganha maior peso com a pandemia, que a voz e os corpos por democracia precisam ampliar a sua potência. Uma democracia que enfrente as desigualdades para além das disputas de vagas eleitorais no Estado. Uma democracia que nos garanta as condições para viver, com alimentos, educação, seguridade e segurança. Uma democracia inteligente, construída por uma diversidade de atores da vida real, que conquiste todos os seus direitos, na ampliação da coletividade. A sociedade civil, que sempre é clamada, nesse modo de produzir e de organizar que despedaça vidas, para apresentar centelhas de dignidade, precisa se movimentar. Formação, organização, ação: são palavras que nos tomam ainda mais e não vamos deixar passar, vamos fazer acontecer.

Certamente, sem ilusões. Não se pode esperar de quem os direitos não precisam bater na porta para se mobilizar pelo direito do outro. Monstrualizar é sempre mais fácil para esse grupo social que se empanturra às custas da miséria material alheia. Mesmo quando tais grupos brincam de se lançar em organizações da sociedade civil, servem apenas para ampliar o véu mistificador e intenso que faz com que o lucro organize, no impulso do mercado, as pessoas que precisam gastar sem ter para viver. Acaba se perdendo a vida durante a própria existência da vida e busca-se soluções que ampliam a trágica ideologia do individualismo.

Nosso movimento precisa ser na direção contrária. É fundamental e decisivo que a solidariedade e o coletivo costurem nossas vidas e produzam, em pontos múltiplos que se ampliam, um bordado de multidão com acesso ao conhecimento e voltado para a ampliação da consciência. Quem vende a força de trabalho para sobreviver e precisa do salário para existir, precisa de mais do que comprar. Para além de se manter vivo e em condições de se viver mais um dia é preciso nos unificarmos, com toda a diversidade que há nesse setor social, e transformarmo-nos em política e em cultura, impregnando a vida para favorecer a vida.