23.03.24 Javier Tolcachier

Não é tarefa fácil comentar o que aconteceu no auditório da Câmara Municipal de Krokus, nos arredores de Moscovo, na perspetiva de um jornalismo não violento. É ainda mais difícil se o jornalista tentar, por um momento, colocar-se na pele dos familiares das dezenas de vítimas mortais ou sentir o terror por que terão passado os que lá estavam e conseguiram sair com vida.

No entanto, é necessário fazer esse esforço. É essencial. Porque deixar a história desta nova tragédia nas mãos do jornalismo monopolista é tão incendiário quanto os explosivos que provocaram as chamas no teto do local.

Irresponsabilidades

A tónica informativa (e desinformativa) nestes casos recai sobre os possíveis autores do crime e os seus mandantes. Quanto aos primeiros, não é nada difícil identificá-los. Num mundo de amor ao dinheiro, de milhões de despojados, de sofrimento mental generalizado, de governos imersos em miséria moral e de conspiradores estatais de mente sombria, é simples contratar, equipar e treinar mercenários para tão abominável tarefa.

Colocar uma bandeira, emitir comunicados atribuindo a responsabilidade a este ou àquele grupo, escrever o que devem dizer no caso de serem capturados, é ainda mais simples, de modo que, para além da raiva suscitada pela ação atroz, é secundário expor os seus atores.

Já os mandantes, podem ser rastreados a partir do objetivo da ação. Num ambiente geopolítico de tensão total, numa leitura superficial, é óbvio que este ataque visa provocar no Estado russo respostas que justifiquem o clima de pré-guerra que os porta-vozes atlantistas, os militares e as fábricas de armamento tentam gerar atualmente.

O aparecimento no guião das milícias do Estado Islâmico tem possivelmente como objetivo criar um novo flanco no cenário de guerra, com a intenção de semear a discórdia nas repúblicas da Ásia Central, maioritariamente povoadas por muçulmanos. Não é por acaso que um dos primeiros telefonemas do Presidente Putin foi para o seu homólogo uzbeque, Shavkat Mirziyoyev, que condenou o atentado e expressou as suas condolências às famílias afectadas. O Uzbequistão é um aliado da Rússia na Organização de Cooperação de Xangai e acolhe a sede da estrutura regional antiterrorista criada pela Organização de Cooperação de Xangai.

A um nível totalmente especulativo, a atribuição do atentado a um grupo islamista e eventuais acções de retaliação por parte do governo russo poderão ter como objetivo inflamar os rebeldes contra a presença militar decisiva daquele país na Síria ou desviar as atenções e até mesmo visar gerar uma rutura no bloco internacional que condena sem reservas a limpeza étnica atualmente levada a cabo pelo governo israelita contra a população palestiniana de Gaza.

O ovo da serpente

Longe destas conspirações monstruosas, as grandes maiorias aspiram à paz e ao progresso pessoal e social e condenam a guerra, o terrorismo e a violência como metodologia de ação.

Mas estes pesadelos incubam-se mais perto do que se possa pensar. O discurso do ódio é consumido diariamente nos ecrãs e nas redes sociais, nos estereótipos repetidos vezes sem conta por uma imprensa igualmente mercenária, nos medos que semeiam fobias e estigmas, nas imagens de inimigos internos e externos que o poder fabrica para desorientar as pessoas e não ser reconhecido como a verdadeira causa do caos.

Este discurso consegue enraizar-se na nossa própria consciência, quando permanecemos adormecidos e não nos apercebemos da inutilidade de naturalizar a violência. A realidade, longe de nos convencer disso, impele-nos a acordar e a afastar estas mentiras da nossa imaginação e a escolher uma atitude em que prevaleçam a empatia, a compaixão, a solidariedade e o afeto pelos outros.