MINERAÇÃO

Por Fernanda Perdigão

 

O rompimento da barragem da Vale S.A em Brumadinho, ocorrido em 25 de janeiro de 2019, completará 5 anos no próximo mês, e deixou um rastro de destruição e morte. Mais de 270 pessoas morreram e muitas ficaram desabrigadas. As pessoas atingidas pelo desastre enfrentam um processo de reparação que é lento e difícil.

 

O acordo judicial firmado entre a Vale S.A; Governo do Estado de Minas Gerais; Ministérios Públicos Federal e Estadual e Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, em fevereiro de 2021, prevê valores distribuídos em vários anexos do Acordo, como para Fortalecimento dos Serviços Públicos; Segurança Hídrica e em grande maioria Obras viárias definidas pelos chamados “Compromitentes do Acordo” (Governo do Estado de Minas Gerais; Ministérios Públicos Federal e Estadual e Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais). No entanto, o acordo é muito criticado por não ter sido negociado com as pessoas atingidas, que não tiveram voz na sua elaboração e na sua execução.

A execução do acordo está sendo feita sem a participação das pessoas atingidas. A Vale é a responsável pela implementação de medidas previstas no acordo, e no ano de 2023, houve a conversão de alguns projetos de obrigação de fazer da Vale para obrigação de pagar, colocando a execução dos projetos sob responsabilidade dos Municípios, e as pessoas atingidas têm pouco ou nenhum controle sobre esses processos.

A situação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale S/A em todos os 26 Municípios da Bacia do rio Paraopeba pode, de fato, ser analisada sob diversas bases filosóficas e teóricas, especialmente quando observamos a falta de participação desses indivíduos em decisões cruciais que afetam suas vidas.

Importa destacar que, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos exalta a dignidade da pessoa humana e diz que em face dela é que são reconhecidos todos os direitos iguais e inalienáveis como fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo. O Pacto estabelece, logo nos seus primeiros artigos, o dever dos Estados de assegurar os direitos nele consagrados a todos os indivíduos, protegendo-os, inclusive contra a violação de seus direitos por entes privados.

O rompimento da barragem não só resultou em perdas humanas e ambientais devastadoras, mas também expôs a fragilidade das comunidades afetadas diante de acordos e decisões que são tomadas sem o devido envolvimento e representação dessas pessoas. Esse cenário reflete, em alguns aspectos, características de uma forma contemporânea de escravidão. Essa situação de falta de participação das pessoas atingidas no processo de reconstrução pode ser interpretada como uma forma de escravidão moderna.

A escravidão moderna se caracteriza pela exploração de seres humanos que são privados de sua autonomia e de sua liberdade. As pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale estão vivenciando a ausência de seus direitos fundamentais, experimentando a exploração de seus direitos à reparação por atores diversos e pela Vale, que lucra com a mineração, e através do Acordo Judicial de reparação, ameniza os impactos de sua imagem com propagandas que não refletem a realidade.

A comparação entre a situação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho e a escravidão moderna pode ser feita com base em diversas teorias. Uma dessas teorias é a teoria da alienação, desenvolvida por Karl Marx. Marx argumenta que a alienação é um processo pelo qual os trabalhadores são privados do controle de seu trabalho e de seus produtos, um processo de objetivação, tornando o homem estranho a si mesmo, aos outros homens e ao ambiente em que vive. No caso das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Vale, elas estão sendo alienadas do processo de reparação, que é controlado pela Vale e pelo sistema minerário tendo como maior interlocutor o Governo do Estado de Minas Gerais.

Outra teoria que pode ser aplicada a essa situação é pelos ensinamentos de Foucault em relação a perspectivas a respeito do poder, seja no que concerne à análise de relações de dominação concretas na sociedade, seja no que se refere à busca de vias para superá-las. Foucault argumenta que a dominação é um processo pelo qual um grupo de pessoas exerce poder sobre outro grupo.

A ausência de voz e participação ativa das vítimas pode ser entendida como uma negação de sua autonomia e liberdade, características de uma escravidão moderna. É uma espécie de subjugação pela força econômica das grandes corporações, onde os afetados são alijados do processo decisório que moldará seus destinos. Essa falta de voz, aliada à influência do poder econômico e do sistema, lembra a condição de vulnerabilidade que historicamente caracterizou a escravidão, onde indivíduos eram subjugados por estruturas de poder que negavam sua liberdade e autonomia.

Além disso, a representação distorcida ou até mesmo a ausência de representação efetiva dos interesses das pessoas atingidas por parte de atores que se colocam como seus representantes é equiparada a uma forma de dominação do poder sobre as pessoas atingidas, configurando a ausência de autonomia. Esses intermediários muitas vezes falam em nome das comunidades atingidas sem realmente refletir ou incorporar suas reais necessidades e desejos, agindo, de certa forma, como agentes que perpetuam a marginalização e a falta de voz das pessoas atingidas.

Ademais, a ausência de punição dos culpados pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho é uma forma de violência institucional que perpetua a escravidão moderna das pessoas atingidas. A recente audiência sobre o habeas corpus do ex-presidente da Vale, Fábio Schvartsman, é um exemplo dessa violência. A ausência de punição dos culpados pelo rompimento da barragem da Vale é uma forma de dizer que a vida das pessoas atingidas não vale nada. É uma forma de dizer que o poder econômico é mais importante que a justiça e a democracia.

O sistema minerário em Minas Gerais, junto com as grandes empresas, cria uma dinâmica em que os interesses econômicos muitas vezes suplantam os direitos e a dignidade das pessoas afetadas por desastres como o de Brumadinho. Esse cenário, de certa forma, reflete dinâmicas de poder desiguais que remetem a estruturas de exploração historicamente associadas à escravidão.

Enquanto houver uma interpretação limitada sobre a violação da dignidade humana, citando-a apenas de forma tangencial, o impacto das palavras de Castro Alves em “Navios Negreiros” manter-se-á relevante. Permanecerá presente a realidade dos indivíduos privados de liberdade, sem acesso a luz, ar ou razão, conforme descrito no poema.

Portanto, a situação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem não apenas clama por justiça e reparação, mas também levanta questões profundas sobre o poder, representação e liberdade, ecoando aspectos de opressão e marginalização presentes em cenários históricos de exploração humana.