O artigo que se segue serve para revelar o verdadeiro caráter do agora com 100 anos defunto Henry Kissinger, a “estrêla máxima” dos conselheiros políticos dos presidentes americanos nos últimos 50 anos. Um homem sem escrúpulos que, acima de tudo, ajudou  a alargar e a consolidar o domínio norte-americano por todo o mundo tal como o conhecemos agora.
Leiam pois esta “elegia” a uma personalidade diabólica que, na imprensa ocidental, é celebrado como um herói fora de série…


Artigo de opinião de Carlos Matos Gomes (*)

Do Kissinger só vai a enterrar um invólucro com cem anos. O veneno permanece. Os espiritistas dirão que resta a alma, o espirito. Dante quase certamente o colocaria no oitavo círculo do seu Inferno, o dos fraudulentos, dos bajuladores, que são enterrados com esterco, dos que venderam favores divinos e peças sagradas, dos que aceitaram subornos, dos governantes corruptos e desonestos, além dos chantagistas, dos hipócritas, dos conselheiros que aconselharam outros a tomar decisões prejudiciais, dos causadores de discórdia, dos falsificadores, falsários e mentirosos.

Há séculos que existem Kissingers. O apelido mais conhecido é de eminência parda, originalmente atribuída ao abade Leclerc du Tremblay, o “braço direito” do cardeal Richelieu, também ele um “pardo”. Leclerc era um frade capuchinho que usava um hábito bege denominada “parda” na época. Ficou o nome na política. Eminência parda é o nome dado a um sujeito que não é o governante oficial, mas é o verdadeiro poderoso.

Quando não se conhece a origem de um crime, ou de um autor de um ato criminoso é habitual dizer-se: sigam o cheiro do dinheiro, ou, mais seguro, procurem o cheiro do dinheiro e o do maior escroque que estiver junto do criminoso. Kissinger foi a eminência parda de Nixon, ele próprio um dejeto tóxico. Tão repugnante que em 1968 o próprio Kissinger disse que seria “o mais perigoso de todos os homens para ter como presidente!”, isto antes de trair o seu protetor, Nelson Rockefeller, o candidato republicano às primárias, de quem era apoiante. Depois de Nixon ter vencido Rockefeller, enquanto Kissinger trabalhava como conselheiro do Departamento de Estado da administração Johnson — democrata , foi oferecer ao estado-maior de Nixon os seus contactos com a administração Johnson para passar as informações que recebia no Departamento de Estado acerca das conversações de paz com o Vietname do Norte, para pôr fim à guerra, um ponto decisivo na próxima campanha presidencial. Um perfil de traidor. No final de Outubro Kissinger informou os apoiantes da campanha de Nixon que os diplomatas americanos estavam a abrir champanhe em Paris e horas depois Johnson suspendia os bombardeamentos ao Vietname do Norte. Um acordo de paz animaria a campanha do democrata Hubert Humphrey, que estava empatado com Nixon nas sondagens. Os apoiantes de Nixon chantagearam e pagaram aos corruptos dirigentes do Vietname do Sul para atrasarem os acordos até às eleições. Mais umas centenas ou milhares de mortos, americanos ou vietnamitas não tinham qualquer valor para Nixon, ou para Kissinger. Nunca tiveram. A guerra prosseguiu. Após a vitória de Nixon, depois de ter sido nomeado conselheiro de segurança, Kissinger aconselhou Nixon a bombardear o Camboja (um Estado com quem os Estados Unidos não estavam em guerra) para pressionar Hanoi a negociar, porque pretendiam agora abreviar as conversações que tinham sabotado.

Sabemos, as pessoas minimamente informadas sabem muito bem dos grandes crimes que Kissinger cometeu, dos imensos sofrimentos que causou pelo mundo durante os seus anos de eminência parda dando luz verde a golpes de estado, o mais conhecido é o do Chile, genocídios, autorizações a ditadores para matar e torturar, vendeu os curdos, apoiou o rapto do general chileno René Schneider na esperança de derrotar Allende, no pós-Vietname dedicou-se a espalhar o caos no Médio Oriente que ainda hoje se mantem, entre atos menores apoiou a invasão de Timor-Leste pela Indonésia, interveio na política interna portuguesa durante a revolução de 1974, na guerra civil de Angola.

O mundo de hoje, resultante da guerra fria, é um mundo construído pelos Estados Unidos e desenhado por Kissinger. Há seguidores e apóstolos, mas nenhum como Kissinger escapou não só na impunidade como atingiu a glória de ser um oráculo universal, em vez de ser uma cloaca. Nixon foi arrastado para a lama de onde provinha. Kissinger saiu da lama para as delícias da santidade, de Deus ex machina. Elevou-se do matadouro para os altares onde é adorado como um génio da diplomacia pago a peso de oiro pelos sermões. O que diz mais dos valores que presidem aos comportamentos da opinião pública, dos dirigentes políticos, dos manipuladores de opinião do que da criatura. Diz mais de nós do que dele.

Dele restam os truques. Após a queda de Nixon, esse sim, conhecido como o Tricky Dicky, de quem fora o cão de cego, ao aterrar na Áustria a caminho do Médio Oriente, Kissinger convocou uma conferência de imprensa e, quase em lágrimas, ameaçou demitir-se, dizendo com voz embargada que quando as memórias do seu tempo fossem escritas alguém poderia lamentar que por decisões que tomara talvez algumas vidas pudessem ter sido salvas e talvez algumas mães ainda tivessem os seus filhos vivos, “eu levo isso como parte da minha história. O que eu não levo como peso da história é uma discussão sobre a minha honra!” O espetáculo funcionou. Kissinger expôs os crimes de Nixon e os jornalistas e opinion makers incensaram-no; Eis um homem! Enquanto a Casa Branca de Nixon era apresentada como um ninho de víboras, Kissinger continuava a ser alguém em quem a América (e o mundo) podiam acreditar! (Paulo Portas e Durão Barroso, à sua medida, conseguiram ter êxito com o mesmo truque — há quem os leve a sério!)

Ele aproveitou bem essa credibilidade nos anos que ainda viveu, durante quarenta anos como o chefe da Kissinger Associates. Uma empresa de “consultoria” cuja lista de clientes tem sido um dos documentos mais procurados em Washington desde, pelo menos, 1989, quando o senador Jesse Helms exigiu, sem sucesso, vê-la antes de considerar a confirmação de Lawrence Eagleburger (um protegido de Kissinger e funcionário da Kissinger Associates) como vice-secretário de Estado. Mais tarde, Kissinger deixou o cargo de presidente da Comissão do 11 de Setembro em vez de entregar a lista para revisão pública. A Kissinger Associates foi uma das primeiras participantes da onda de privatizações ocorrida após o fim da Guerra Fria, na antiga União Soviética, na Europa Oriental e América Latina, ajudando a criar uma nova classe oligárquica internacional, os que estão hje na Rússia, na Ucrânia, na Polónia, na Hungria, na Checoslováquia, mas também na Alemanha e no Reino Unido e também na China. Kissinger usou os contactos que fez como funcionário público para fundar uma das empresas mais lucrativas do mundo. Tendo escapado da nódoa de Watergate, usou a reputação de sábio da política externa para influenciar o debate público — em benefício dos seus clientes. Kissinger foi um entusiástico defensor de ambas as Guerras do Golfo e trabalhou de perto com o presidente Clinton para impulsionar o NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América) através do Congresso dos Estados Unidos, que tornou ainda mais dependentes as economias do Canadá e do México e enfraqueceu a União Europeia, colocando-a contra o Japão. Várias versões de Kissinger conviveram com ele, como co-oficiantes e foram eles que talharam o nosso atual mundo e que estão na origem dos conflitos que vivemos.

O mundo do pós guerra fria é o da era dos Estados Unidos. Não é uma questão ideológica. É uma questão de facto. Houve uma era romana, uma era árabe, uma era portuguesa, curta, talvez de sessenta anos, no século dezasseis, uma era espanhola, uma era inglesa, longa e depois uma era americana, a que estamos a viver. E as eminências pardas desta era são Robert Mc Namara, o homem de Kennedy, são Zbigniew Brzesinski, a eminência parda de Carter, o homem da Trilateral de David Rockefeller (sempre um Rockfeller), o grande fórum de expansão da ideologia neoliberal dominante, e inspirador das ações no Afeganistão e na Ucrânia, Donald Rumsfeld e Dick Cheney, as almas negras de Bush filho, os patrocinadores da invasão do Iraque. E, acima de todos, o patriarca Kissinger. Não se trata de demonizar nem de santificar o homem, mas de caraterizar o tipo de criatura que, de facto, determinou a vida e a morte de milhões de seres humanos, a fome e a miséria, a fortuna, a depredação do ambiente. Trata-se de avaliar o papel das criaturas sombrias que determinam as escolhas que fazemos julgando que estamos a votar livremente, de criaturas que se riem dos discursos de Guterres sobre o ambiente, ou do papa Francisco sobre a fome e a guerra, que se riem da Carta dos Direitos Humanos da ONU, que determinam o valor do dinheiro da Reserva Federal dos EUA, do Banco Mundial, do FMI, do BCE, que criam Netanyahous, Zelenskis, Pinochets, Bin Ladens, Boris Johnsons… marionetas e homens de mão.

Quando falamos em eleições, em democracia, em expressão da vontade popular pelo voto, alguém votou em Kissinger? Mas vivemos na era Kissinger, como há trezentos anos vivemos no sistema de trocas de mercadorias por papel determinado pelas duas famílias mais poderosas e influentes do planeta, os Rockefeller, nos EUA, e os Rothschild na Europa, que ainda há pouco estabeleceram uma nova “aliança estratégica” para unir esforços e, segundo a publicidade, “oferecer oportunidades de investimento e de negócio a seus sócios e clientes”. A nova aliança tem o nome de RIT (Capital Partners). Eles riem-se.

Texto com o apoio de um artigo de Greg Grandin, professor na Universidade de Yale, prémio Pulitzer 2020, publicado na revista Nation — 29/Maio -05/Junho de 2023.


 (*) Carlos Matos Gomes é um dos mais conceituados militares e historiadores da guerra colonial. Nasceu em 1946. A sua carreira militar iniciou-se em 1963. Cumpriu comissões durante a guerra colonial em Moçambique, em Angola e na Guiné, nas tropas especiais Comandos. Na Guiné foi um dos fundadores do Movimento dos Capitães e participou na primeira Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) que organizou a revolta militar de 25 de Abril de 1974, a qual trouxe a liberdade e a democracia a Portugal e a independência de todas as colónias africanas. Militar no ativo até 2003, é atualmente Coronel na situação de reserva. Desenvolveu também uma carreira literária, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz.


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