“Quando a violência causa silêncio, é porque estamos a fazer algo de errado”, diz uma letra dos Cranberries. Esta foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando vi os números de dois estudos publicados há duas semanas sobre as despesas com armamento (SIPRI) e com armas nucleares (ICAN), enquanto assistia à Conferência Internacional sobre a Paz na Ucrânia realizada em Viena nos dias 10 e 11 de Junho, organizada por organizações internacionais galardoadas e não galardoadas com o Prémio Nobel da Paz.


Por Nikos Stergiou (*)

A guerra na Ucrânia, na sequência da invasão russa em fevereiro de 2022, não é o único conflito armado que assola o planeta e, claro, tal como todos os outros, poderia ter sido evitada. O culto da  “necessidade” da confrontação armada conduziu, nos últimos anos, a uma quase completa ausência de atividade na arena internacional da diplomacia pela paz, provocando a morte, o desespero e o desenraizamento de milhões de pessoas, ao mesmo tempo que os danos provocados nas infraestruturas e no ambiente são verdadeiramente incalculáveis.

Na conferência de Viena, organizada por organizações internacionais como o International Peace Bureau (Prémio Nobel da Paz 1910), a Liga Internacional das Mulheres para a Paz e a Liberdade (WILPF) (Prémio Nobel da Paz 1931 e 1946), CODEPINK e Transform! Europe, reuniram-se 300 representantes de organizações e movimentos de 32 países. Tive a honra de representar, pela Grécia, o Mundo sem Guerras e sem Violência, o ramo grego dos Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear – IIPNW (Prémio Nobel da Paz 1984), o gabinete grego dos Amigos da Natureza e a OIKOPOLIS. A declaração final apela ao início imediato das negociações e a um cessar-fogo e apela a uma mobilização global entre 30/9 e 8/10.

A Cimeira de Viena foi alvo e atacada por aqueles que desejam continuar a guerra com todos os ganhos económicos e políticos que ela implica. Em particular, a embaixada ucraniana realizou uma conferência de imprensa dois dias antes da Cimeira, acusando os organizadores e os participantes de serem apoiantes de Putin e da Rússia. Em consequência, o local da Cimeira foi alterado e recebemos telefonemas ameaçadores para o novo local, pelo que, por razões de segurança, os trabalhos de abertura foram adiados por 3 horas. Os sítios Web da Cimeira e do IPB foram atacados por piratas informáticos e ainda não estão a funcionar no momento em que escrevo.

O ataque a organizações e indivíduos que lutam pela Paz, a Não-Violência e o Desarmamento Nuclear não é novidade. Recordo que, na Grécia, Nikos Nikiforidis foi executado pelo Estado grego em 1951 por promover o Documento de Estocolmo (sobre o desarmamento nuclear) e “por tentar implementar ideias subversivas através da recolha de assinaturas para a paz”. E não foi o único, nem na Grécia nem a nível internacional. A história parece estar a repetir-se na Europa e estamos a assistir a uma nova forma de “guerra fria”, com novas características: Os EUA estão a NATOizar a Europa, as condições sociais e societais estão a piorar para um número cada vez maior da população, enquanto os direitos sociais e humanos, conquistados com muitas lutas, estão a ser constantemente atacados.

No entanto, na Cimeira, não se ouviram apenas vozes da Europa, e essa foi a sua riqueza. Representantes do Sul geográfico e da Ásia transmitiram as suas perspetivas através das próprias experiências nas lutas pela descolonização, e resistindo aos métodos da política neo-colonial manifestados por: empresas multinacionais, ligações coercivas às super-potências, e dívidas enormes. E um ponto importante foi o destaque da contribuição dos armamentos militares para as alterações climáticas, com a famosa “pegada ecológica de botas”. Entre os pontos altos da Cimeira mencionados pelos oradores, destacam-se os seguintes:

– “Os EUA interromperam os processos de assinatura de cessar-fogo e de conversações entre a Ucrânia e a Rússia em março de 2022. A adesão da Ucrânia à NATO estava planeada desde 1992.” (Jeffrey Sachs, Académico, EUA).

– “A guerra é projetada como patriótica, enquanto a paz é considerada anti-nacional” e “o Sul geográfico deseja agora ser um parceiro em igualdade de circunstâncias, em vez de um aliado unilateral, e propõe a cooperação internacional em vez da concorrência internacional” (Anuradha Chenoy, Académica, Índia)

– A guerra sabota a resposta complementar da diferença, destrói a vida, é a cultura da morte” (David Choquehuanca, Vice-Presidente da Bolívia)

– “Os resíduos radioativos com plutónio das centrais nucleares do Mar Báltico equivalem a 10.000 bombas do tipo Hiroxima e estão divididos entre 2/3 debaixo de jurisdição da NATO e 1/3 debaixo de jurisdição da Rússia e da Bielorrússia.” (Oleg Bodrov, cientista nuclear, Rússia)

– “Só os belicistas desejam a guerra, porque a vida humana não tem valor para eles. Aqueles que se recusam a pegar em armas e a lutar, aqueles que desejam a Paz, são as vozes da razão e da consciência. A guerra é um crime por definição. A não-violência é a derradeira arma contra a violência” (Yurii Sheliazhenko – objetor de consciência ucraniano).

A guerra na Ucrânia trouxe de novo para a ribalta duas questões existenciais muito importantes:
O perigo representado pelas centrais nucleares e o perigo ainda maior das armas nucleares. Como vimos no início deste artigo, tanto os inquéritos do SIPRI como do ICAN mostram um aumento das despesas militares, um aumento das despesas com armas nucleares por parte dos nove países que as possuem, mas também um aumento do número de ogivas nucleares em estado de prontidão, ou seja, de lançamento/utilização imediata. Em termos práticos, as conclusões anteriores significam que a indústria militar teve mais um ano de crescimento dos lucros, que há mais apoio à criação de centrais nucleares como fontes de material radioativo para uso militar, e que o planeta corre ainda mais o risco de voltar à era dos organismos unicelulares. Mas a paz é perigosa…

O renascimento de um movimento pacifista, não violento e anti-nuclear a nível local e internacional não é, no entanto, uma utopia. O Tratado de Proibição de Armas Nucleares da ONU já mostrou o caminho, uma vez que foi mobilizado pelas pessoas e não pelos governos, e 68 países ratificaram-no e outros 24 assinaram-no, 3 dos quais são membros da UE. 65 municípios da Grécia e o KEDE (união dos municípios Gregos) emitiram resoluções apoiando-o e apelando ao governo grego para que o assine, tal como mais de 500 cidades em todo o mundo.

No entanto, para reavivar este movimento, é útil reativar a consciência do “público”, desenvolver a solidariedade antimilitarista e aperceber-se da ligação transversal que as despesas com armamento têm com as questões da destruição ambiental, dos refugiados, da miséria económica, da degradação da saúde pública e da educação, da discriminação de género, do patriarcado e da restrição das liberdades sociais e dos direitos humanos. Por exemplo, se o Departamento de Defesa dos EUA fosse um país, seria o quinto maior poluidor do planeta. Se juntarmos o resto das forças armadas, ficamos com uma ideia mais clara deste pântano que esgota os recursos humanos e naturais em nome da “estabilidade”, ao mesmo tempo que desestabiliza tudo aquilo em que “toca”.

O perigo da Paz reside na liberdade, no desejo de viver e na igualdade de todos os povos. É uma bomba-relógio nas mãos da indústria militar, que a não consegue compreender e desarmar. É a ameaça de uma sociedade não violenta. Para evitar o silêncio da violência, precisamos de mobilizar ainda mais as vozes da paz.


(*) Nikos Stergiou é presidente da seção grega da organização Mundo sem Guerras e sem Violência

Fotos: Nikos Stergiou

Tradução do inglês: Pedro Braga