CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Helena sempre me deixou idiota. – Ele pensava enquanto caminhava para o tribunal. Como pode isso? Depois de tudo o que fez da vida: encontrara amores os mais diversos, desde ninfetas até sexagenárias resistentes; andara pelo submundo colhendo tipos e informações tanto para sua atividade de advogado como para desenvolver sua inexplicável verve literária (à qual enxertava de poesia uma crítica ácida ao jornalismo marrom, aquele que vive da desgraça alheia e glamouriza a violência).

Não adiantava se vangloriar de suas conquistas profissionais ou sexuais, nada conseguia sobrepujar a força que aquela mulher mantinha convergindo toda sua atenção. Era solitário e escrevia suas memórias de impressão da vida e de Helena enquanto uma mulher, uma companheira de noite, dormia na cama ao lado da mesa onde digita essa história. Ouve Ojala, de Silvio Rodriguez, e pensa flutuando no meio dos acordes oníricos do compositor cubano; sorvendo as palavras intensas cheias de América Latina.

Helena sempre me deixou idiota.

Pensa: e se ela tivesse ido a Cuba com ele? A Israel? À Grécia? Se tivesse ao seu lado quando enfrentou juízes e desembargadores arrogantes, assistiu a pessoas pobres e conseguiu moradias, salvou vidas através de ações judiciais de leitos de CTis, alcançou dignidade a pessoas tratadas com indignidade pelo árido Estado brasileiro?

– Ah, Helena – rumina o pobre solitário. – Se eu pudesse resumir minha vida em um compartimento, como uma espécie de urna funerária após a incineração, eu pediria a Deus que a colocasse em suas mãos ao lado de um exemplar de o Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.

Ele se reclina na cadeira, bebe de seu velho companheiro escocês, inicia o inventário de uma de suas vidas, aquela mais dolorosa, aquela proibida e natimorta, sua vida ao lado de Helena. E começa assim:

Jorge, esse era seu nome, nasceu em Ipanema; “cumpriu” sua adolescência numa esbórnia entre boêmios intelectuais e semicriminosos; fora vacinado contra mulheres fatais ainda garoto e, por fim, aprendeu a apreciar a beleza da vida e a ter uma postura positiva quanto aos desafios da reação às conquistas que a vida nos opõe.

Uma inevitável lágrima escorre seguida de um sorriso sardônico frente ao jogo da adolescência – uma de suas vidas.

Mundos diversos, concepções diferentes forjaram dois seres humanos, que se encontraram após reviravoltas. A Terra precisa sempre se manter girando. Foi assim que Jorge conheceu Helena.

A família dele fora abastada até perder tudo, absolutamente tudo; Jorge tinha uma bolsa de estudos à qual conseguira por meio de prova. Enquanto seus pais foram morar num lugar carinhosamente chamado de Saco (próximo a Magé), ele foi morar numa cidade serrana do estado do Rio de Janeiro chamada Friburgo. Tinha 17 anos e foi lá que conheceu Helena… Helena, Helena, Helena…

Na sua infinita ignorância buscou extravasar seu desequilíbrio hormonal sempre em outras garotas (sim! Àquela época você era uma garota Helena e eu já era um burro); sempre a busca de um vazio em mulheres alheias a ela, a Helena.

Anos se passaram e ela de repente apareceu em uma repartição pública justamente onde Jorge trabalhava. E mais uma vez Deus dispunha à minha frente a possibilidade inequívoca de ser pleno no amor e mais uma vez dei às costas a isso, provando o mel ilusório de fugacidades para terminar assim um rosário de lamúrias em busca de um tempo perdido.

Pois então, Jorge foi trabalhar em uma escola, a mesma escola em que para ter o que comer antes de prestar concurso se misturava com os alunos do turno da noite para se alimentar da merenda escolar. Agora era um servidor e, com seus vencimentos, voltou à velha esbórnia boêmia de outrora.

Por outro lado, Helena sempre foi uma mulher, desde garota era uma mulher: de uma serenidade aconchegante, um tom de voz melífluo e que carregava em seu bojo toda a força da simplicidade imiscuída de um charmoso porte de elegância e, claro, seu olhar nunca disfarçou que dentre tanta ternura havia o fogo da feminilidade decidida – desde intensidade da pele até objetivos e, por que não? Temperamento forte (nunca a vi nervosa, mas sempre a imaginei nos momentos em que a vida obriga imposições e irritações).

Assim foi a segunda chance que Deus lhe deu e, por ser um escravo da testosterona, procurou outras servidoras e fêmeas estranhas da noite. Não tinha capacidade de compreender o porquê de permanecer na repartição pública no horário de Helena, subjugando-se à agrura dos infindáveis desvios de função apenas para poder estar perto dela.

Momentos e sentimentos: lia os contos que Oscar Wilde escrevera para seus filhos (O gigante egoísta) e, às vezes, até mesmo arrancava lágrimas dela; pouco a tocava, porque a tinha envolta em respeito e admiração, mas o fato de vê-la quase todo dia era uma redenção para ele. Preenchia o que noites e noites de sexo com outras nunca lhe dera.

Irritou-se quando ela se iludiu com um gendarme de terceira categoria e que a iludiu com promessas de rompimento de seu casamento para viver com ela. Como aquela deusa poderia ter conspurcado sua sublimidade com aquele verme? Ela descera de sua beleza consagrada como Titânia ao se apaixonar pelo asno em Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare. Ela esquecera de quem é, desceu como santas ao baixo da vida para depois, bela e sagaz que é, reerguer-se e impor mais uma vez seu carisma ao mundo.

A força feminina dessa mulher sempre me fez idiota.

Burro, nunca consegui me cercar dela e mostrar os sentimentos que provocava em mim, Certa feita me enchi de coragem e, após o pedido de exoneração que requeri para manter meu ritmo de estagiário da Defensoria Pública e do Ministério Público Federal – além de monitor de matérias na faculdade e bolsista pesquisador do CNPq – comecei a mandar buquês de rosas para ela; isso chamou sua atenção.

Foi quando aconteceu o grande erro, em minha terceira vida com Helena: estava me aproximando, conseguindo o toque essencial daquela pele suave cuja penugem de pêssego sempre observara eriçada contra a aluz do sol e a quintessência da entrega da mulher amada e sublime. Errei e errei feio, como um grande boçal que fui e sou com relação ao amor: busquei outras mulheres enquanto estava conquistando-a.

Ia almoçar ou jantar com ela, quando fui ao Rio de Janeiro para satisfazer a ansiedade do meu sexo desenfreado; enquanto dormia, a companheira da noite mandou mensagens de meu celular para a minha grande mulher: xingou-a e aviltou-a de tal forma que, óbvio, houve ruptura do que ainda era embrião: houve o fim de minha possibilidade de plenitude com a mulher única, profundamente minha e, a partir dali apenas restou pendurar lágrimas para secar como a música de Jule Stine e Sammy Cahn que eu mandava para ela naqueles tempos.

A partir dali nunca mais haveria a grande chance e eu me casei e perdi 12 anos de vida (apesar de ter conquistado ao destino o amor de dois seres humanos maravilhosos: meus dois filhos amados). O casamento em si é um contratado vago de obrigações convencionais que pretende limitar a vitalidade do sexo, mas, por outro lado, envolve símbolos de felicidade. Escolhi errado, vivi errado, e, por tantos e tantos erros, eu, Jorge, perdi a fonte de minha admiração nas minhas vidas, perdi Ela, perdi Helena.

Deus age assim, na surdina e detalhes. Juntei minhas roupas; pus em malas com o auxílio de um velho e paternal amigo e, enquanto saía de minha ex-casa carregando malas e à pé (que o carro ficasse com a ex) falei: “Cara! Não olho mais para trás, agora só penso no meu futuro”. Pois então, mais uma vez o Livro da Vida põe Helena justamente à minha frente: ela aparece saindo de uma dessas repartições e, fingindo não me ver, caminha ao longo de uma extensa rua que, ao mesmo tempo que dá para minha atual residência dá para a atual localização do trabalho dela.

O Destino brinca com a vida dos reles mortais, como já faziam os deuses com os guerreiros de Tróia. Ela é casada agora com filho lindo ao lado e meu destino se tornou acre; não haverá uma quarta e definitiva vida com Helena? Cabe a Deus a realização do que sempre teve de ser e não o foi, o tempo do coração é diferente do tempo da rotina: tempo cronos e tempo kairós.

O que me resta dizer para Helena além de confissões da madrugada (sou insone e vocacionado à vida noturna) e devaneios? Que os diga aqui e agora, pois não haverá uma quinta vida com Helena e agora é o último suspiro de uma vida que, apesar de escrita no Livro da Vida, ainda não ultrapassou o “deveria ter sido” por falta de coragem ao macho dolorosamente iludido.

As ilusões me custaram caro, mas que ao menos a liberdade que Deus me dá permita que eu escreva aqui isso:

Tempo, tempo, tempo… Meu maior inimigo: forçar a fuga de sua inexpugnável linha, forçar limites e chegar a você, mulher de meu objetivo feminino, mulher da vontade do meu corpo e epicentro de um sentimento germinado de querer bem… Na busca do seu sexo embrenho em ternuras de cuidados e acolhimento. Provar do mel do seu corpo com o cuidado de quem sabe gostar. Helena (é esse o nome dela?), sou andarilho de sua fala taquigráfica e o coração marca: teremos algo nosso, teremos algo de bom; quero você.

Que assim seja! E eu possa percorrer sentimentos os mais intensos, ternos e plenos! Que palavras se concretizem no toque único de seu corpo e de seu sentimento.

Uma explosão em misturas de força e carinho; vou entrar em você e vou viver o amálgama de todas as sensações que eu e você tivemos em nossas experiências de vida, vou sentir suas vitórias e perdas em mim e vou compartilhar com você o que eu sou.

Êxtase infrene do querer, o que, ao estar com quem admiro, será ser junto: cada momento peço à Divindade ter a sabedoria de saber viver, porque gostar de verdade transcende a presença, o sentimento frustrado de posse: gostar é viver plenamente a presença na ausência. É estar por gostar. Encontrar seus pontos, ter prazer por dar prazer.

Eis o inventário das minhas vidas ao lado de Helena e ainda agora não passei do que Platão falava: “O amor só existe quando o ser amado se torna amante” – e os percalços e erros da minha vida reduziram esse universo de conhecer a grande mulher em um mero desejo.

Quem ganhará: o grande amor ou a convencionalidade?